Raspar o pobre
Não tenho por hábito citar-me. Mas, a 18 de junho do ano passado, a crónica intitulava-se “A bem da nação/raspar, raspar”. Tinha havido o lançamento, precisamente no Dia dos Museus, da famigerada Raspadinha do Património: mais um jogo de fortuna e azar, incitando à participação da plebe numa “boa causa” (afetar boa parte dessa verba ao Fundo de Salvaguarda do Património Cultural). A iniciativa foi logo verberada pelo presidente do Conselho Económico e Social (CES): Francisco Assis considerava “indecoroso que se ande a aproveitar a possibilidade de determinados setores ficarem viciados, para depois apregoar que vêm resolver problemas sociais (...) os indícios que temos vão no sentido de considerar que a raspadinha é um verdadeiro crime contra os setores mais carenciados da sociedade portuguesa”.
Os números há dias vindos a público mostram um país afundado no vício: os jogos de fortuna e azar têm vindo a ganhar uma dimensão verdadeiramente astronómica e a própria “raspadinha do património” teria vendido, num ano, a bonita soma de 20 milhões de euros. Os números relativos aos jogos on line, divulgados no final de junho, atingem proporções estratosféricas para o tamanho (território e população) do retângulo português: entre o terceiro trimestre de 2016 e o final de março de 2022, a receita bruta das entidades exploradoras soma 1,54 mil milhões de euros, tendo o Estado arrecadado mais de 567 milhões de euros (estão registados 760 mil jogadores). Claro que não é difícil ver, no crescimento exponencial desta prática a partir de finais de 2019, os efeitos da pandemia, que fomentou novos hábitos de jogo (o digital), a par com o decréscimo do “territorial” (casinos, salas de máquinas e bingo). Ou seja: o vício do jogo — on line, raspadinhas, apostas, e todas essas variantes — alimenta uma verdadeira “indústria da sorte”, em que os portugueses “investiram”, só no primeiro trimestre deste ano, mais de 28 milhões de euros... por dia!
Para melhor avaliar os sintomas e diagnosticar a “doença” — mais visível no caso da “raspadinha”, em que os portugueses gastam 4,7 milhões… por dia! — o presidente do CES avançou, como prometido há um ano, para um estudo rigoroso desta problemática, que ficou a cargo da Universidade do Minho e tem o apoio de credenciadas instituições privadas. O Protocolo de cooperação estabelecido visa esclarecer os vários efeitos da lotaria instantânea, e fala concretamente em fazer a “caraterização económica, social e epidemiológica dos jogadores de raspadinha”.
Ora, para lá dos estudos, necessários e sempre importantes, já podemos dar um nome a essa “doença”: ela chama-se... pobreza! A sedução de um jogo fácil e barato, com eventual gratificação instantânea, contribui para os mais pobres criarem uma idealização, alienada e viciante, do seu “status”, em busca de uma vida diferente. Como resistir à tentação, se a publicidade assedia os incautos por todos os lados? E, lá no fim da engrenagem, é sempre o Estado “glutão” que fica a ganhar. Todavia, a realidade não melhora: subsiste desigualdade, economia débil, défice geracional, e a pobreza endémica que atasca na inércia um país há 50 anos prometido.
“Quem paga a raspadinha?”, pergunta o estudo do CES. A Santa Casa não será, com certeza: o pobre bem raspa, mas afunda-se cada vez mais…
Marx dizia: “o homem pobre tem um deus rico”. Diríamos agora: um pobre país de pobres, tem uma Misericórdia rica!