Distopias e espertezas saloias
1. Disco: vi-os uma vez ao vivo no Alive. Não os conhecia e cheguei ao palco secundário pela mão de um amigo. Gostei do que ouvi, embora em palco não sejam grande coisa. Falo dos Foals. Saiu agora o seu novo trabalho, “Life Is Yours”. Não desilude o seu dance-rock tão característico.
2. Livro: a referência é a “Metamorfose” de Kafka. Mas ao contrário. Em “A Barata”, de Ian McEwan, um desses insectos reencarna como Primeiro-Ministro de Inglaterra. Uma sátira sobre o caos que foi o Brexit, potenciado por algo que McEwan chama de “reversalismo” ou “monetarismo inverso”, onde se paga para trabalhar e as empresas pagam para as pessoas levarem bens de consumo para casa. Os outros países teriam que pagar por qualquer coisa que exportassem ou construíssem na Grã-Bretanha.
Na paródia de McEwan, Jim Sams, o PM (uma espécie de amálgama de Teresa May e Boris Johnson — se é que isso é sequer concebível) arquitecta a queda do sistema, com o apoio do seu partido deslumbrado com o que não percebe, e legisla a “reversão”.
“A Barata” é um pequeno livro, quase um conto, divertidíssimo. Fica bem em qualquer prateleira.
3. Desde sempre que as distopias fazem parte do nosso universo pessoal. Todos as criamos, de uma maneira ou outra. A partir de uma realidade, montamos uma alternativa. Tem também a característica de ser oposta à utopia. É uma variação mais densa e mais negra, disfuncional e com um nível de felicidade a roçar a desgraça.
Os ingleses criaram um meio-termo a que chamam “what if…”, que podemos traduzir sem fugir ao sentido por: “e se…”.
Vamos lá embarcar numa distopia.
E se…
E se um investidor estivesse em vias de comprar (se é que já não comprou) um edifício nas imediações do Largo do Colégio?
E se o dito edifício estivesse numa zona complicada no que diz respeito à construção?
E se o dito edifício fosse destinado a ser uma unidade hoteleira/apartamentos de topo? E tivesse necessidade de ter estacionamento privado?
E se esse privado tiver interesse em fazer o estacionamento por baixo do Largo do Colégio, destinando alguns lugares aos indígenas, e ficando com os restantes para o seu hotel/apartamentos?
O que é que isto tem a ver com a necessidade de lugares de estacionamento como servidão do comércio tradicional e do centro da cidade? Cada um conclua por si.
E se…
4. E se…
Lembram-se de uma exploração em São Gonçalo, que era amiúde visitada pelas figuras do regime como exemplo de boas práticas agrícolas? Que dava lucro e abastecia o mercado de produtos frescos? Um terreno que viu o seu contrato de aluguer não ser renovado, levando ao encerramento da empresa?
Ora, esse terreno está a ser negociado para a construção, imaginem, de uma urbanização/hotel.
Lembram-se das declarações do Sr. Presidente do Governo, a dar conta de um túnel que pretende fazer, que esventrará a cidade, e ligar a Ajuda a São Gonçalo?
E se… estas duas coisas tiverem uma relação uma com a outra? Autorizou-se a construção de um tal de “Dubai na Madeira” — nome pretensioso e denotador de novo-riquismo — e ninguém se “lembrou” que isso criará uma enorme pressão rodoviária numa zona já de si problemática. A responsabilidade de tudo isto já vem de trás, dos socialistas rosa da vereação anterior e prolonga-se agora por esta vereação socialista laranja. Como sempre, prevalece o “achismo” sobre os estudos de impacto e viabilidade.
Do outro lado da cidade, prepara-se para nascer mais um projecto de enorme dimensão que levará para São Gonçalo milhares de pessoas e respectivas viaturas. Vai daí e sai um coelho da cartola: o bendito do túnel para ligar uma ponta à outra com vazamento para o centro, que já quase não comporta o que tem de tratar diariamente. Agora vejam lá se não faz sentido um tal de parque de estacionamento de 1500 lugares no Largo do Colégio?
Quanto é que isto tudo custará ao erário para benefício de alguns? Quem sabe, mas barato não será. O Albuquerquismo está para a Madeira, como o PedroNunismo está para o continente. Não são em nada diferentes.
Pobres de nós, que entre os de cá e os de lá, já nem sabemos para onde nos virar.
5. Na semana passada, o Tribunal Constitucional emitiu um Acórdão em que considera os confinamentos decretados na pandemia, como uma “forma de privação de liberdade total”. Mais, a decisão não foi só tomada sob um prisma formal, mas também sob uma perspectiva material. O Governo, os Governos, não tinham nenhuma autoridade para decretar confinamentos fora do estado de emergência. Os Governos Central e Regional não tinham poderes para privar de liberdade os portugueses.
Amo por demais a LIBERDADE para poder esquecer e perdoar.
“Essa história dos direitos individuais é uma palermice”, foram palavras de Miguel Albuquerque durante a pandemia. Miguel Albuquerque pode dizer as aleivosias que quiser. O Presidente do Governo Albuquerque não. E foi isso que fez.
Os direitos colectivos não se podem sobrepor aos direitos individuais. A liberdade é um direito de cada um. Se um de nós não tiver liberdade isso torna o colectivo deficitário. Ao longo da história os direitos de grupo têm sido usados para infringir os direitos individuais. A tentação de impor o todo sobre as partes é sempre grande.
Imagine-se num mundo onde não possa votar e decidir sobre o que acha ser melhor para si e para os seus. Um mundo onde não possa dizer o que pensa e sente. Um mundo onde não possamos ser o que quisermos. Um mundo onde possam arrombar-nos a porta de casa e entrar por ela dentro, por puro exercício de autoridade. Um mundo onde possamos ser presos sem culpa formada. Um mundo onde a nossa propriedade possa ser confiscada, sem qualquer justificação ou justiça.
Num mundo desses, os nossos direitos individuais deixam de existir. Vivemos numa democracia e os direitos individuais são sua característica essencial. São definidores.
Pensar que os direitos individuais são “uma palermice”, é conceber que os direitos colectivos prevalecem sobre o que cada um de nós tem de mais precioso. O Presidente do Governo Regional da Madeira entende que o Estado, como expressão de uma vontade colectiva, está acima de tudo.
Marx também… Engels também… Lenin também… Stalin também… Mao também… Mussolini também… Hitler também… Franco também… Salazar também…
A destempo, o Tribunal Constitucional veio dar razão a quem a tinha. Com base nisso, vou pensar se recorro ou não a tribunal, para ser ressarcido da minha privação de liberdade.
6. Até que a coisa não é complicada, é ter em atenção o que somos, onde estamos e para onde queremos ir. Depois, é como escreveu Nial Ferguson: “economia de escala, externalidade de rede, custos de transacção reduzidos e a provisão mais eficiente de bens públicos essenciais, como lei e segurança, infra-estruturas e saúde”, ao qual acrescentaria a educação.