Crónicas

«Nada muda de um momento para o outro»

«Vivíamos, como de costume, ignorando. Ignorar não é o mesmo que ignorância, exige esforço da nossa parte.» História de Uma Serva, p.69

Imagine que tem a sua vida minimamente organizada: um emprego estável, uma vida familiar relativamente harmoniosa, a capacidade para estar com amigos e amigas com alguma regularidade, a possibilidade para ler um livro na sua varanda ao fim-de-semana ou ir ao cinema, ou ao teatro. Regista a existência de movimentos sociais e políticos extremistas que se perfilham no horizonte mas como o seu dia-a-dia continua normalmente, desvaloriza os discursos de ódio contra determinados grupos sociais, não dá importância aos relatos de discriminação, não dá importância à perda progressiva de direitos em nome de qualquer coisa, não valoriza os avisos vindos de outras paragens em que essas orientações políticas chegaram ao poder.

Agora imagine que, certo dia, percebe que não consegue movimentar a sua conta bancária. Dirige-se ao banco e é-lhe dito que a autorização para movimentar a sua conta bancária está suspensa, que só o seu cônjuge o poderá fazer; imagine que ao chegar ao seu emprego, descobre que já não o tem porque faz parte do grupo de pessoas a quem o direito ao trabalho passou a ser interdito.

Suponha que, a determinada altura, os seus direitos de cidadania são revogados. Imagine que todo o seu guarda-roupa é considerado inapropriado e o seu comportamento classificado como indecente. Imagine agora que a sua capacidade reprodutiva é a única coisa que o/a mantém viva. E que sabe que, a partir de agora, a sua filha será educada para ser esposa, não aprenderá a ler nem a escrever.

Tudo isto que acabo de pedir que consiga imaginar faz parte do livro História de Uma Serva, da escritora canadiana Margaret Atwood, publicado em 1984. Uma distopia, claro, mas tudo o que ali é narrado é profundamente humano e reconhecível; a autora fez questão de apenas incluir no livro algo que nós, seres humanos, já tenhamos feito, algures, ao longo da nossa História: as execuções públicas para servir de exemplo, os campos de trabalhos forçados, as violações e execuções em nome de Deus, a separação de famílias por serem consideradas de alguma forma ilegítimas ou indesejáveis, a submissão das mulheres em função das suas capacidades reprodutivas, a interdição à educação, a proibição de acesso a manifestações artísticas, … nada disto nos é estranho. Mas também é verdade que cremos – ou queremos acreditar – que nada disto é presente, e muito menos futuro.

E no entanto, um horror semelhante é vivido hoje pelas mulheres afegãs, entretanto esquecidas pela comunidade internacional, que viram os seus direitos – à saúde, à educação, ao trabalho e à independência financeira, entre outros – desaparecerem quase por completo com o regresso dos Talibans ao poder.

Na União Europeia, que diz que a proteção dos direitos das pessoas LGBTI e os direitos das mulheres são uma prioridade, assistimos a uma total impotência perante a realidade de ter Estados-Membros que violam direitos básicos dos seus cidadãos e cidadãs em função da sua identidade ou da sua orientação sexual (veja-se o caso da Polónia ou da Hungria, só para dar dois dos exemplos mais flagrantes).

Nos EUA, de um dia para o outro, as mulheres viram os seus direitos diminuídos com a revogação do direito ao aborto, decidida pelos juízes do Supremo Tribunal à revelia da vontade de uma larga maioria da população. E já há receios de que os alvos a seguir sejam o direito à contraceção e o direito ao casamento de pessoas do mesmo sexo, entre outros.

Entre nós, como é hábito, estamos mais atrás. Mas os sinais estão aí: a chegada de movimentos racistas, de extrema-direita e ultraconservadores a lugares de destaque e com direito de antena, o discurso de ódio em relação a determinadas comunidades normalizado, a chegada ao Parlamento de partidos que apoiam a segregação de minorias, que atacam direitos conquistados, que desvalorizam direitos humanos consagrados quando dizem respeito a determinados grupos (como imigrantes, mulheres, pessoas LGBTI) – os sinais estão todos aí.

Continuamos a desvalorizar determinados crimes, e a descredibilização da palavra das vítimas por um lado a desculpabilização do comportamento de quem agride entram em campo de múltiplas formas, mais ou menos graves, que vão desde a piada fácil e aparentemente pueril até aos acórdãos de tribunal que imputam responsabilidades a quem é agredido e desvalorizam o comportamento de agressores.

A tudo isto temos assistido e vivido e, apesar de um certo choque inicial de ou uma indignação passageira perante os casos que vamos conhecendo, certo é que continuamos sem dar grande atenção aos sinais e desvalorizamos as consequências que daí resultarão se nada fizermos. Mas «Nada muda de um momento para o outro; numa banheira cuja água aquecesse gradualmente morreríamos cozidos sem dar por isso. (…). As histórias dos jornais eram como sonhos para nós, sonhos maus sonhados por outras pessoas. Que horror, dizíamos nós, e eram, mas eram horríveis sem serem credíveis. Eram muito melodramáticas, tinham uma dimensão que não era a dimensão das nossas vidas.» (pp.69-70).

Será?