Crónicas

“Sistémico” (II)

Há oito dias, ficava no ar a pergunta: não estará na altura de ser, hoje, repensada a instituição “seminário”?

A questão ecoa repetidamente em centenas de artigos, entrevistas e ensaios que muitos, sobretudo na área católica, vêm dedicando ao tema (da pedofilia na Igreja). Não porque haja uma relação imediata e universal entre os abusos e a instituição, mas porque a revelação da “desgraça”, durante anos ocorrida (e ocultada) em dioceses dos quatro cantos do mundo, acabou por questionar o “modelo educativo” de origem...

É certo que a instituição, com os seus parâmetros vocacionais, deu à Igreja, ao longo de séculos, figuras exemplares de dedicação e santidade, no apostolado da fé ao serviço das comunidades; mas o escândalo trouxe à luz uma verdadeira “fratura exposta” entre esse modelo institucional e a aceleração do mundo e da vida – doloroso hiato entre uma formação sociologicamente condicionada por uma suposta persistência da “cristandade”, e a nova sociedade secular, mais ou menos ateia e indiferente ao religioso, que se guia por nexos de pura racionalidade, utilidade e imanência, e onde a pretendida “sacralidade” da figura e do discurso do padre deixaram de ter relevância. É mesmo o Papa Francisco que, no seu discurso à Cúria Romana (2019), reconhece esta mudança epocal: “Irmãos e irmãs, não estamos na cristandade, não mais! Hoje, não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais ouvidos. Precisamos, portanto, de uma mudança de mentalidade pastoral (…) porque a fé não mais constitui um pressuposto óbvio da vida em comum, pelo contrário, muitas vezes é até mesmo negada, zombada, marginalizada e ridicularizada”.

Ora, perante as reviravoltas tão radicais do mundo que conhecíamos, a Igreja tem vindo a produzir novas orientações para os seminários. Mas, as mudanças são mais que lentas, e a sobrevivência do chamado “sistema clerical” é aquilo que salta à vista quando se verificam os resultados – na linguagem, nos modos de presença e de representação… Daí o “sistémico” (aquilo que suporta ou afeta todo o organismo). Porque o sistema, por definição, é o organizacional, dura e perdura, vivendo da reprodução de regras e rituais que, em complexa interação, se auto-organizam para o exercício perene do “poder eclesiástico”. Da formação em ambiente artificial e segregado do mundo, tipo “estufa”, à inoperância e desorientação quando lançados na realidade, passando até por algum espírito de “casta” – eis o que torna problemático o modelo, e leva muitos responsáveis a falarem de “problema sistémico” na questão dos abusos sobre menores. Na sua carta de renúncia como arcebispo de Munique (junho 2021), o cardeal Marx assume que, pelas pesquisas e perícias dos últimos dez anos, “houve falhas de nível pessoal e erros administrativos, mas também um fracasso institucional e sistémico”. Ou seja: o problema dos abusos tem as suas raízes na própria instituição, na forma como fomenta todo um modelo de autorreferencialidade na formação do clero, donde se origina o clericalismo como forma de poder a vários níveis, e donde nascem várias derivas. A reforma estrutural do que resta do modelo tridentino poderia ser, se verdadeiramente implementada a “Ratio Fundamentalis” (2016) sobre a formação do clero, um passo decisivo para abanar o sistema, e questionar e melhorar a operatividade dos “funcionários do sagrado”. Afinal, é o próprio Papa que o reconhece: “O clericalismo é a perversão mais difícil de eliminar”.