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Os Neohumanos

Vivemos no início da chamada 4ª revolução industrial, em que conceitos como inteligência artificial, big data, automatização, realidade virtual, internet das coisas e interconectividade inteligente entre sistemas e o humano vão permitir cada vez mais a eficiência nos processos industriais, assim como a apresentação de produtos customizados, criados no aqui e agora para a pessoa, ou melhor, para o consumidor ou o utilizador.

Citando JF Kennedy, “A mudança é a lei da vida. E aqueles que apenas olham para o passado ou para o presente irão com certeza perder o futuro”.

As inovações tecnológicas vêm para ficar, o que por si só não é mau, dependendo apenas de como serão usadas.A sua evolução está a acelerar de uma maneira que em 2022 não conseguimos prever as suas consequências num futuro próximo, quer na nossa qualidade de vida e bem-estar, quer no seu lado mais nefasto, o que deveria exigir uma reflexão ética sobre a diferença entre o bom progresso e o progressismo, doutrina que defende que os avanços em direção ao progresso ad infinitum são essenciais para aperfeiçoar os humanos e as sociedades, e avançar será sempre bom.

Os riscos emergem de possibilidades que se podem imaginar, por exemplo, no campo da biotecnologia. A natureza humana tem e terá sempre traços de frenesim e de curiosidade, mas se tecnicamente for possível a inseminação por um companheiro já falecido, devo poder fazê-lo? Ou implantar um embrião de um clone de um filho que faleceu? Escolher o sexo ou outras caraterísticas do meu filho por catálogo, ou ser livre para usar um amplo rol de técnicas disponíveis, não para fins terapêuticos, mas de “aperfeiçoamento” dos meus próprios limites enquanto humano? Estas questões para alguns poderão parecer estapafúrdias ou saídas de um episódio de “BlackMirror”, mas algumas delas já nos bateram ou estão a bater à porta, e podem não estar a ser pensadas da melhor forma, pois como possibilidades técnicas, a partir do momento que sejam viáveis, vão somente depender de um mero ajuste legal e administrativo para estarem ao dispor de todos (ou de alguns), perdido na espuma mediática dos dias, em nome, por vezes, de uma distorcida e algo infantil ideia de progresso e de liberdade de escolha. Como refere o filósofo João Maurício Brás “a boa sabedoria radicava no controlo dos nossos apetites e paixões, das portas que não se abrem. O que não se deve fazer marcava esse limite de uma ideia de ser humano e civilização. Essa ideia foi substituída pelo «se posso, faço» e pelo «tudo posso». É moderno considerarmos os limites um problema técnico”.

O desenvolvimento tecnológico há muito que ultrapassou a velocidade de processamento cerebral, que se mantém igual aos nossos primórdios. É provável que a automatização, a dependência da tecnologia, as multiplicidades de escolhas, o ter no imediato e à medida tenha como consequências a dificuldade em adiarmos a gratificação, e a menor capacidade de parar e de pensar. São nestes tempos que urge refletir sobre quais os caminhos para onde queremos apontar, enquanto sociedades e espécie. E em cada caminho há sempre bermas e limites que podem, mas não devem ser ultrapassados, sob risco de perdermos muito do que nos faz humanos pelas estradas das possibilidades.