Filhos de madeirense deportado para Cabo Verde há 80 anos reencontram-se
Os irmãos Joaquim e Deodato Liberal viveram décadas sem saberem um do outro, entre Cabo Verde e Portugal, até que em 2014 'terminaram' com 80 anos de deportação do pai e conheceram-se.
"Foi uma promessa que fiz a mim mesmo. Ajudar o meu pai a encontrar o filho", conta, pausadamente, à Lusa, em Tarrafal de São Nicolau, Joaquim Liberal Spencer, criado naquela ilha de Cabo Verde, onde praticamente todos, ainda hoje, vivem da pesca e onde fez vida na indústria conserveira, seguindo os passos do pai, que morreu em 30 de maio de 1988.
Joaquim nasceu na vila de Ribeira Brava, em 07 de agosto de 1932, filho de Joaquim Pinheiro Villa, um dos primeiros deportados políticos da ilha da Madeira para São Nicolau, no ano anterior.
"Foi sempre partidário, ou defendia, o regime liberal", explica, justificando assim o nome Liberal dado pelo pai também ao seu irmão, como soube anos mais tarde.
"Mas acabou comunista", aponta, sem esconder o riso alternado com o orgulho pelo percurso e inteligência do pai.
Com pouco mais de 19 anos, Joaquim Pinheiro Villa trabalhava numa ourivesaria do Porto - onde nasceu em 15 de novembro de 1907 - durante o dia e à noite estudava engenharia.
Com o golpe de Estado de 28 de maio de 1926, protagonizado por militares e antiliberais, que iniciou o período da Segunda República e depois o Estado Novo, as convicções de Pinheiro Villa reforçaram-se, embora, garante o filho, sem atividade política até ser detido quando estudava num café do Porto, como o próprio lhe foi contando ao longo da vida.
"Não que o apanhassem à frente de qualquer revolução, foi preso estudante (...), entraram pela porta do café e dirigiram-se diretamente à sua mesa. Quer dizer, já andavam de olho nele", recorda, garantindo que o pai foi traído pela polícia política da época.
"Enfiaram-lhe na algibeira um rolo de panfletos políticos. Que ele não tinha. Malandros", atira.
Começou aí uma verdadeira aventura que mudaria a vida de Villa. Foi transferido do Porto para o Governo Civil de Lisboa e dali, ainda em 1931, colocado num grupo de deportados políticos enviados para São Miguel, nos Açores.
"Para não estarem com despesas, puseram-no em liberdade. Só que tinha de comparecer na polícia de 24 em 24 horas", explica o filho Joaquim, que aos 90 anos não dispensa nenhum pormenor da história de vida do pai.
"Ambientou-se naquele meio, era rapaz novo, e acabou por arranjar uma namorada e casou à pressa com a rapariga, açoriana", recorda.
Toma parte ativa na revolta de deportados e militares em abril de 1931, em Ponta Delgada, reprimida pelo regime, que o obriga a fugir para a ilha da Madeira, onde é preso ao desembarcar do navio.
"Já vinha com o ódio nele desde Lisboa. Não podia deixar de ser. Mas com aquela esperança de que um dia a ditadura caísse", explica o filho Joaquim.
Sem demora, junto com um grupo de algumas dezenas de outros detidos, integra o primeiro grupo de deportados enviados da Madeira para São Nicolau. Naquela ilha cabo-verdiana o regime colonial instalaria o primeiro presídio do género e campo de concentração, respetivamente em Ribeira Brava, no então Seminário-Liceu (1866 a 1931), encerrado para receber os deportados da Madeira, e no Tarrafal (de São Nicolau), antecessor do campo do Tarrafal, na ilha de Santiago.
Entre junho e outubro de 1931 permanece no campo de concentração de Tarrafal de São Nicolau, voltando depois para o edifício do seminário, na Ribeira Brava, a 15 quilómetros de distância, montanha acima, num percurso por norma feito a pé pelos deportados.
Em novembro de 1931 "fica livre", através de uma espécie de liberdade condicional concedida pelas autoridades, mas durante vários anos não tem autorização para sair de São Nicolau, como explica Joaquim: "A ilha era uma prisão, naquela altura".
Casou então com uma cabo-verdiana e em 07 de agosto de 1932 nasce na Ribeira Brava Joaquim Liberal Spencer. Ou como gosta de dizer, "o primeiro filho em Cabo Verde", de cinco em São Nicolau, já que dez meses antes, como soube muito mais tarde, tinha nascido nos Açores o seu irmão Deodato Liberal Pinheiro Villa, fruto do primeiro casamento do pai, interrompido pela deportação.
"Levei cerca de 80 anos para o conhecer. Andei à procura, o meu pai andou à procura dele, da mulher que deixou nos Açores", desabafa, acusando o regime de então de ter impedido qualquer contacto, desviando toda a correspondência, até que Deodato interiorizou que simplesmente o pai o tinha deixado para trás.
"E ele foi tantas vezes à procura do filho nos Açores, mas nunca o encontrou", desabafa Joaquim, que acabaria por encontrar Deodato em 2014 em Oeiras, com a ajuda de familiares.
"Não há dúvidas que nós somos irmãos. Porque o sangue ligou-nos imediatamente", conta, recordando que depois do primeiro encontro, em Portugal, levou Deodato a São Nicolau, em abril de 2014, para conhecer a terra que se transformou primeiro em prisão e depois na casa do pai, onde foi também sepultado.
"Depois de tantos anos à tua procura, venho encontrar-te aqui", recorda Joaquim, sobre as palavras do irmão, quando o levou a conhecer, em lágrimas, a sepultura do pai de ambos, em Ribeira Brava.
Hoje mantêm o contacto, à distância, entre Cabo Verde e Portugal, apesar das dificuldades de saúde, sobretudo de Deodato, já bastante debilitado. Já Joaquim vai todos os dias para a oficina da histórica conserveira Sociedade Ultramarina de Conservas (Sucla), no Tarrafal de São Nicolau, onde começou a trabalhar com o pai até se tornar proprietário, negócio que entretanto deixou nas mãos do filho.
"O meu irmão já não ouve bem, tem de ser através da mulher dele", lamenta Joaquim, que seguiu os passos do pai, que entre uma passagem por Angola, ainda se tornou numa das figuras da história de São Nicolau, como ourives, mecânico, serralheiro e empresário, até mesmo empreendedor.
Foi o caso do trigo apreendido em São Nicolau a um navio italiano durante a segunda guerra mundial, em pleno período de seca no arquipélago, quando Villa aproveitou para criar a primeira moagem em Cabo Verde, e com isso, durante alguns meses, garantir alimento.
"Isso salvou muita gente de morrer de fome", afirma.
Uma história de quase um século em São Nicolau, desde que o pai ali chegou deportado, como muitos outros que acabaram por ficar na ilha, que Joaquim diz estar a passar de memórias para livro. Garante mesmo que é a sua prioridade, agora que tem mais tempo, com menos afazeres na fábrica de conservas, a maior empregadora da ilha.
"Já comecei há dois anos, estou a passar para livro. Leio e releio e já vou em dois livros. Estou a ver quando é que o vou conseguir terminar", afirma, sem se comprometer com prazos.
"Será um dia destes", atira.