Crónicas

Urbano-depressivo me confesso

1. Disco: já saiu o disco do projecto HUMMANA, da Cristina Vieira. “Tribo” de seu nome. Está no Bandcamp e é extraordinário.

2. Livro: desde muito novo que tenho um certo fascínio pela cultura e história do Médio Oriente. “A Vida e a Lenda do Sultão Saladino”, de Jonathan Phillips, é muito mais do que uma biografia. Phillips realiza um grande trabalho de análise crítica ao Médio Oriente medieval e ao modo como Saladino governou grande parte dele, mas também descreve o impacto do sultão e do seu legado, o relevante que é, mesmo nos nossos tempos. Um herói celebrado por séculos.

3. Somos assim uma espécie de urbano-depressivos. Nós, os que temos alguma preocupação com o que se passa à nossa volta e nos afecta. Os outros passam a vida a fingir que as coisas que os chateiam não acontecem. Varrem tudo para debaixo do tapete.

⁃ Olha!? A gasolina aumentou. Se calhar para a semana baixa.

⁃ O Governo não baixa o IVA? Também não se nota. Vem com o preço.

⁃ Este ganhou a Câmara e ia mudar tudo. Mas está, praticamente, tudo na mesma.

⁃ O Governo finge que governa. Normal.

E por aí fora. “Que se lixe”, e arrematam com um sonoro “são todos uns filhos da mãe” (quando não dizem pior) “e isto é sempre a mesma merda”. Repito: bufam e fingem que o que os chateia não acontece.

É respirar fundo e ter esperança que um dia deixem de precisar de fingir. Que ouçam o que os outros, que não os mesmos de sempre, têm para dizer. Que há mais por detrás do horizonte a que estão habituados.

A esperança. A bendita esperança.

A par da saudade, com a esperança montamos numa inanição que nos amarra e não nos deixa abrir caminho com determinação. Esperança é ficar à espera que alguém apareça para resolver os problemas que nos apoquentam. O eterno sebastianismo.

Nunca fomos ricos, mas temos “saudade” de o ser porque temos a esperança que um dia nos saia o Euromilhões.

Apoiados nesta espécie de droga atávica com que nascemos, tornamo-nos irracionais, hostis ao novo e ao que não conhecemos. Concluímos sem pensar, desconfiamos da ciência, enchemos o peito de uma fanfarronice que não vai para além do umbigo, simplificamos o complicado e complicamos o simples, somos os puros e os imaculados porque os outros são umas bestas. A cereja no topo do bolo são muitos dos políticos, que, cinicamente e sem escrúpulos, tão bem se sabem aproveitar destes nossos defeitos.

4. Se estivermos muito perto de um elefante, o único que conseguimos ver é uma superfície rugosa e cinzenta. Precisamos de nos afastar para podermos ter a percepção do todo, para lhe vermos o tamanho, a tromba, as patas, os dentes de marfim, o rabo, tudo aquilo que o define como animal.

Na política é o mesmo. Se nos interessamos pelo nosso futuro, se tentamos estar atentos, não o podemos fazer só nos períodos eleitorais. Estamos muito perto. Percepcionamos a parte e não percebemos o todo. Temos de conseguir afastarmo-nos dos pormenores, para nos apercebermos do quadro geral. Os períodos de campanha deviam ser o que menos interessa na decisão de como vamos votar.

O importante é o afastamento da data. É o conseguirmos abarcar o conjunto. O que foi feito, o que foi dito, o comportamento entre períodos eleitorais. É aí que os partidos devem ser avaliados.

5. Nesta terra que amamos não existe nenhum poder, seja ele governamental ou autárquico, que não tenha aprendido a explorar a desigualdade económica para estabelecer uma base firme de apoio, baseada na dependência. As pessoas ficam agradecidas aos poderes pífios, por estes lhes darem o que é seu de direito. Isto é assim porque, infelizmente, muitos dependem do cabaz da junta ou da Câmara, da Casa do Povo, dos subsídios do Estado, da habitação. Desta amálgama que resulta num populismo abjecto que os convence da gratidão que têm de demonstrar, aderindo a valores impostos pela dependência, aceitando de cabeça baixa um código de hierarquia e visão de mundo, fruto de uma vil propaganda que os convence da caridade, da bondade de quem os aguenta pobres e sem perspectivas. Isto é socialismo. Um vampirismo que chupa o sangue de muitos. E a vítima agradece.

6. Em Outubro de 2011, em plena campanha para as eleições regionais, AJJ inaugurou a Lagoa do Santo da Serra, obra da responsabilidade da Secretaria Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais, através da IGA (Investimentos e Gestão da Água, S.A.), que representou “um investimento público da ordem dos 5,5 milhões de euros co-financiado pela União Europeia ao abrigo do PRODERAM – Programa de Desenvolvimento Rural para a Região Autónoma da Madeira”.

Uma obra que envolvia os que estão em todas. Os de sempre. O resultado foi um fracasso. A impermeabilização não funciona, logo a lagoa não passa de um poço.

Há poucos dias foi inaugurado o novo sistema de rega do campo de golfe, mesmo ali ao lado. 2,5 milhões de euros. Pergunta-se: vai buscar água à dita Lagoa? A resposta é não.

A obra da Lagoa do Santo da Serra foi feita. Mal feita. E responsabilidades? Nenhumas, o normal nestas coisas.

Ninguém tem culpa de nada.

7. No entusiasmo da campanha das Eleições Autárquicas, Pedro Calado, “o petit Jardim”, disse com toda a clareza (tenho o vídeo das declarações) que ia fazer um parque de estacionamento subterrâneo no Largo do Colégio, para 1000/1500 carros. Não há volta a dar ao que foi dito. Foi isso que anunciou alto e bom som. Vir agora com lérias dizer que o que disse foi que esses lugares iriam ser criados no centro do Funchal, é “só” uma mentira.

Mas deixemos isso de lado, por enquanto, pois estarei cá para o lembrar, sempre que necessário, do número de viaturas que disse que o parque ia levar e atenhamo-nos a outras questões, que considero pertinentes, em relação a mais esta megalomania.

Umas perguntas para distinguir o “achismo” do Sr. Presidente da Câmara, do pensar que devia fazer antes de abrir a boca. Que tal uns estudos? A começar por geológicos. A trepidação do cavar o buracão não afectará as fundações de edifícios tão importantes como a Igreja do Colégio? O Colégio dos Jesuítas? O Museu de Arte Sacra? O próprio edifício da Câmara?

Mais: sabe o Sr. Presidente que em tempos idos o mar chegava até um pouco abaixo da Sé? Que muito provavelmente a partir dos 10/15 metros a água e a humidade serão muitas?

Vamo-nos deitar a adivinhar quem será o privado que se chegará à frente? A obra não será tão complexa e cara que, para ter retorno, tenhamos que ter uma espécie de parque de estacionamento do Hospital, versão 2.0, em preço de utilização por hora?

Outras: permite o PDM tal disparate? E o que dirão os obrigatórios pareceres da Direcção Região de Cultura, dado que toda aquela zona é de valor patrimonial incalculável? Não tem uma obra deste calibre de ter a aprovação da Assembleia Municipal?

Por vezes faz bem tirar a cabeça do umbigo e usar o título da música dos Pink Floyd: “Is There Anybody Out There?”

8. Porque a “silly season” tem sido prolífera em asneirada, deixo o último “entusiasmo” do Sr. Presidente do Governo, o tal de túnel da Ajuda a São Gonçalo, para outra oportunidade.

9. Morreu um ditador, um cleptocrata, um assassino. E ponto.