Crónicas

Este é o Dia

Antigamente, era só o Camões que era invocado, talvez o “Dia da Raça”, para uns espíritos mais empedernidos, mentalmente coevos do Poeta, ou do timoneiro do Estado Novo, quem sabe... Mas depois, já fora de tempo, mas sempre a tempo, veio a democracia: a dada altura, a efeméride tornou-se abrangente e grandiloquente, muito conforme ao habitual embandeiramento lusitano. E assim, Nosso Senhor e os “pais da Pátria” lá nos depararam o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas! É obra: já que é para comemorar, que seja a sério, e que ninguém se sinta de fora.

De Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas: queremos um Dia assim, em que sejamos capazes de nos revermos e pensarmos por inteiro. Sabendo aonde pertencemos. Somos tudo isso como nação. Carregados de passado, somos a memória de um pequeno território que se tornou imenso na geografia do mundo, que foi capaz de ir muito além de si próprio e de suscitar novos feitos, aventuras bem reais, a coragem para além do medo em mares jamais navegados. Plantámos e incorporámos “novos mundos”, somos um país feito de vários, uma identidade e uma cultura entretecidas no poliédrico civilizacional de uma história de 800 anos, a jangada de pedra que, entre a Europa e o mundo, interroga sem cessar o seu modo de existir: que país somos, que país queremos ser?

O poema épico de Camões oferece as coordenadas essenciais para situarmos a nossa vocação atlântica. Entre assomos de grandeza inesperada e o fatalismo que parecia devorar todo o ímpeto da esperança, lá fomos sulcando as ondas turbulentas da história da Europa e do mundo, numa macerada contradição entre a confinada pequenez do território e o sonho de ir mais longe, procurando, individual e coletivamente, “saídas de emergência” para o atavismo, a pobreza e o “fatum” que, durante décadas, emolduraram a epopeia lusitana numa redoma sem brilho e sem ousadia. Sempre sofremos com o pior e o melhor de nós, mas essa dilaceração íntima foi o que nos fez não sucumbir à resignação. É verdade que muitas vezes acabámos por morrer na praia, mas em muitas outras soubemos aproveitar ventos e marés e sermos, assim, uma nação que tem gente, formas de vida, comunidades e desígnios de esperança pelos quatro cantos do mundo — o que acaba por ser, noutros moldes, noutras linguagens, a continuidade de uma espécie de lusa vocação de existir... em prolongada odisseia atlântica! Celebrar este Dia é, portanto, rever tudo isso e, na impiedosa luz do presente, de novo nos interrogarmos: que país queremos ser? que futuro nos é permitido desejar? que mapa, que cartografia, que horizontes?

Hoje é só um Dia, mas as respostas estão a ser dadas todos os dias e vão ocupar-nos os dias todos ... até se esgotar o tempo que nos resta.

Afinal, o que vamos ter para celebrar a sério nos 50 anos de democracia em Portugal? O que fizemos da catadupa de promessas, da esperança que impulsionou o melhor dos nossos combates? Cantámos paz, pão, liberdade, saúde, educação — mas como é que estamos, mesmo, nesse tão concreto e sofrido “mapa do território”? Palavras e mentiras reluzentes, bem embrulhadas em propaganda a cada eleição que passa — ou, apesar de tudo, algumas breves conquistas, mas tão pequenas e tão aquém da justiça, que tiram fulgor e ousadia à conformada existência quotidiana?

Política, meus senhores, é disso que se trata. E que deveria ser sempre com um P grande, como Portugal.