Crónicas

Isto do dá tempo

Não me esperavam aventuras, mas era bom acordar tarde, mandriar e ir à praia

O céu forrou-se de nuvens como que a confirmar que Junho continua a ser como antes: sombrio, quente e húmido. Não tem diferença de quando era o mês dos últimos testes na escola e eu vivia naquela aflição de quem não estuda e tem de ser criativo para responder às perguntas. E eu fui criativa muitas vezes por achar que, de uma maneira ou de outra, tinha tempo, podia pegar nos livros e nos apontamentos mais tarde.

A minha mãe estava lá, depois, quando chegavam as notas para lembrar-me que podia ser tudo melhor se eu fosse outra, mas não era. Era aquela miúda, desastrada e distraída, que só queria chegar à última semana de aulas para saborear aquela espécie de despedida, em que ninguém queria saber da matéria e já só se pensava nas férias.

Não me esperavam aventuras, mas era bom acordar tarde, mandriar e ir à praia. Ou ficar por casa a ler os livros a que deitava a mão. Não havia muitos, não havia muito de nada. Nem dinheiro, nem roupa, nem comida, ainda que, em certos momentos, não se soubesse o que fazer às ameixas, ao feijão e ao que calhava dar de fartura na fazenda. Sei que, no fim, as ameixas caíam de maduras e a minha mãe fazia açorda de feijão, arroz com feijão e massa com feijão várias vezes à semana.

Mas isso era para depois, para as férias, para os dias quentes e claros de Julho. Em Junho havia aquela chuva miúda ao fim da tarde e no dia a seguir a comprar a roupa e os sapatos novos, parecia propósito e só para estragar a estreia. E ainda estava ali, na aflição de não ter estudado e temendo que saísse uma nota mesmo má, que desse razões para um sermão com missa cantada, daqueles que a minha mãe fazia. E que pesavam muito na consciência. Ainda pesam, acho que sou capaz de a ouvir de cada vez que deixo para mais tarde seja o que for que tenha para fazer.

Importa pouco que tenha virado os 50 anos, que me pareça com ela, que repita as mesmas expressões e cruze os braços como fazia. Por dentro não deixei de ser a mesma, aquela miúda desastrada e distraída, que tentava alinhar-se com a vida, mas nem sempre conseguia. Tal como antes, tal como a minha mãe ora falha o dinheiro, outras vezes chegam azares e, noutras, vence a tendência para adiar, para esperar na ideia que dá tempo.

E também não importa que tenham passado 27 anos sobre esse Junho em que se foi, num sábado de manhã, com o tempo como o que está, quente e sombrio. De cada vez que me vejo na aflição por estar atrasada é a minha mãe que ouço, que vejo a sair apressada de casa, o autocarro a aparecer e ela a descer dois a dois os degraus da escada e a prometer que da próxima vai fazer tudo com tempo.