Crónicas

Celebrar

Feriados políticos como o de hoje tornaram-se mais um dia acrescentado ao lazer, e uma oportunidade de calendário às famosas “pontes”, que tanta dor de cabeça trazem a quem gere serviços públicos fundamentais para a comunidade. A dimensão celebrativa destas datas “fundadoras”, com a sua coreografia, evocações e homenagens, vai ficando cada vez mais confinada ao institucional obrigatório, com os rituais mínimos da participação em honra da efeméride praticamente circunscritos ao núcleo restrito da retórica pública e política que decorre do “dever de ofício” ...

Agora como antigamente, em qualquer latitude das ilhas e das nações, há tiques ancestrais que não se eliminam por decreto e que são, por assim dizer, um atavismo arcaico com que as democracias têm de conviver: o poder é olhado de soslaio, há um em cima e um em baixo, o povo repete que é quem mais ordena, mas sabe-se precário e distante dos círculos de decisão. Nada que a “modernidade” tenha logrado corrigir, antes veio politicamente agravar nas famosas sequelas pós-modernas: (des)informação a rodos; ilusões a granel quanto às utopias fáceis da igualdade e do bem-estar; abismos que se instalam entre as promessas proclamadas e as misérias sem fim à vista; o entretenimento e o consumo feitos nova religião de um suposto paraíso com lampejos de felicidade bilionária. A ligar tudo isso, a inconsciência predadora de um verdadeiro futuro humano para a nossa Casa comum.

O animal humano tem o péssimo hábito de dar por adquirido aquilo em que se revê e reconforta num dado momento da sua breve existência, quando, afinal, algumas experiências felizes do viver coletivo são apenas emergências históricas configuradas por um longo caminho de lutas e conquistas, que se instalam e nos apaziguam enquanto “modo de vida” quase perfeito, mas de que não restam quaisquer garantias... Nada está adquirido para sempre: a vida é devir permanente, a história é evolução instável, o precário e o incerto são a marca da condição mesma de existirmos em conjunto. E, no entanto, ousamos confiar, lutar, avançar. A Autonomia que hoje se celebra é a forma que os madeirenses encontraram de melhor viver a Democracia. Mas nada está consolidado de forma imorredoura e a vida não se deixa cristalizar: exige permanente adaptação, vigilância, coragem e combate. Democraticamente. Porque são mais que muitos os perigos, as ameaças, os inimigos da liberdade. Populismo, propaganda, demagogia — eis os vírus fatais que corroem hoje os estados democráticos, instalando focos de revolucionarismo iliberal e fazendo arrastar nações inteiras, outrora faróis da liberdade, para um futuro obscuro e incerto, em que a pobreza e a opressão podem não ser só uma tenebrosa ameaça. Veja-se o que se passa hoje na bela Europa das nações: quem ousa prognosticar o futuro? Onde e como estaremos em dezembro? E no próximo ano? E como vai ser possível refazer a vida, as economias, as cidades e a paz? É sempre “à escala” que sentimos os impasses e ameaças que pairam sobre a Autonomia e sobre a Democracia. A guerra está longe, mas os seus efeitos ficarão cada vez mais próximos, sofridos e rudes. A incerteza pelo amanhã, a frustração social, a distância entre governantes e governados — eis desafios novos trazidos ao presente pelo futuro instalado como ameaça à escala do mundo.

Hoje, dia de celebrar, seria um dia bom para pensar tudo isso. Mas é “feriado” — e alguém quer saber “dessas coisas”, perguntam os filisteus?