Do cansaço
Na sua audiência geral de 25 de maio, o Papa caraterizava o nosso tempo como a “sociedade do cansaço”, e dizia: “Deveríamos produzir bem-estar generalizado e toleramos um mercado cientificamente seletivo da saúde. Deveríamos colocar um limite intransponível à paz, e vemos surgir guerras cada vez mais impiedosas contra pessoas indefesas. A ciência avança, é claro, e isso é um bem. Mas a sabedoria da vida é algo completamente diferente”. Na raiz do mal estaria “uma desmoralização coletiva do sentido, do amor e do bem” — ingredientes indispensáveis a uma verdadeira “sabedoria da vida” — e que conduziu, de desilusão em desilusão, a uma “nova razão cínica, que soma conhecimento e irresponsabilidade”. Daqui resulta uma falsa conceção da verdade, “camuflada em cientificidade, mas também muito insensível e muito amoral”, que deixou de lado a sua paixão pela justiça, substituída por uma “cultura do saber” que espalha rituais mágicos numa espécie de “feitiçaria culta”, num quotidiano que recalca ou expulsa aquela fundamental sabedoria da finitude humana, lembrada já no Eclesiastes, “Vanitas vanitatis... tudo é vaidade”!
A curiosa expressão utilizada pelo Papa fez-me revisitar um dos livros mais marcantes de Byung-Chul Han (BHC), precisamente “A Sociedade do Cansaço”. O filósofo sul-coreano, que estudou e vive há muitos anos na Alemanha e que é, talvez, um dos pensadores mais lidos do nosso tempo, fala do cansaço como uma forma de “violência neuronal” típica da nossa época: sofrimento psíquico como síndrome de “burnout”, transtorno do défice de atenção, hiperatividade e depressão, são colocados em relação direta com o modo operatório do capitalismo contemporâneo. Marcada por um “excesso de positividade”, esta é a “sociedade do desempenho”: a forma de violência neuronal que lhe está associada já não é estranha e externa, mas interior e “imanente ao sistema”. O “Yes, we can”, de Obama, tornou-se a fórmula mágica apropriada pela subjetividade dos indivíduos, que assim objetivam a sua liberdade como performance (pessoal e profissional) de autosuperação permanente. Na análise de BHC, que compara com o atual os anteriores modelos “disciplinares” de Freud e Foucault, este excesso de positividade conduz o sujeito neoliberal não já à negatividade e à fuga, mas ao esgotamento típico dos sofrimentos psíquicos da nossa época: a sociedade do desempenho produz deprimidos e fracassados... Já não é a liberdade, mas a coação, que força o sujeito (narcísico) do desempenho a alcançar mais e mais, superar-se a si mesmo com novas metas e desafios, sem descanso possível, pois ele, afinal, só está a concorrer consigo próprio: “O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração”; e na sociedade do cansaço, em que o indivíduo é empurrado para novas e sucessivas performances da sua liberdade (para produzir), as doenças psíquicas — considera BHC na sua avaliação bastante ácida do nosso “modo de vida” — são precisamente “as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal” em que a sociedade do desempenho nos faz acreditar. A hiperatividade, a “histeria” da saúde e da forma física, consomem-nos como uma epidemia: o regime de trabalho “non-stop” vai resultar na “sociedade do doping”. Temos, portanto, a (auto)produção de si como suprema felicidade de um desejo sem fim...
Mas, já dos confins do séc. XIX, o velho Zaratustra nos interrogava: “E vós, para quem a vida é furioso trabalho e desassossego: não estais muito cansados da vida?”