O resto é paisagem: ainda a propósito de bilhetes-postais
Há duas semanas falava sobre o cartão-postal a propósito de uma revisitação a um livro editado na Madeira o ano passado, Memórias do Porto Santo e da Madeira – O Bilhete-Postal Ilustrado até ao início dos anos sessenta do Século XX, da autoria de Melim Mendes, colecionador do formato desde os seus oito anos. No preâmbulo da obra, o autor refere que “os primeiros bilhetes-postais ilustrados da Madeira utilizavam, sobretudo, ilustrações do Funchal, devido às características do mercado, em que os principais clientes eram, em conjunto com um turismo hoteleiro que dava os primeiros passos, os passageiros dos navios que demandavam o porto do Funchal nas suas rotas transatlânticas para as Américas e África.” (pág. 18). O livro, composto por uma seleção de cerca de três centenas de imagens de uma coleção pessoal de milhares de exemplares, reparte-a por capítulos temáticos, porventura reveladores de recorrências iconográficas da aplicação do formato a nível regional. A saber: “Porto Santo”; “Chegada à Madeira e Revisitação Breve do Funchal”; “Volta à Roda da Ilha. Costa de Baixo”; “Deambulando pelo Interior”; “As Pessoas e as Casas”; “A Água da Fertilidade, da Mortalidade e da Energia”; “Transportes”; “A Ilha, o Mar e os Navios”; “O Fim do Ano”. Além da dimensão afetiva das recordações pessoais da Madeira e do Porto Santo evocadas a partir dos itens da sua coleção (neles repositadas?), Melim Mendes destaca a importância do formato e destas imagens em particular, para o estabelecimento de uma análise espácio-temporal da ocupação do território, portanto, do semblante daquilo que (também) define uma paisagem.
O cartão-postal ilustrado com temática paisagística concentra num único suporte atributos do dispositivo de envio postal e da representação fotográfica. Opera uma fragmentação e apropriação imagética do mundo, potencia a construção de uma experiência turística do território (uma experiência turística a partir de uma visualidade dada), a partilha emocional dessa mesma experiência e constitui-se como item de coleccionismo de um mundo “portátil e ilustrado”, tal como refere o historiador de fotografia brasileiro Boris Kossoy no livro Fotografia e História, e traduz o ato de coleta de Melim Mendes.
Os cartões-postais também foram meios de construção de imagéticas urbanas e, em outros contextos, de visualidades atrativas para populações em busca de melhores condições económicas, ao transmitir perspetivas sobre esse novo mundo, ao promover a divulgação de um olhar ‘turístico’ sobre o mesmo, ou servindo de representação e experiência da já distante terra natal: “(...) o cartão-postal foi o veículo que deu início ao processo de globalização de um mundo que se internacionalizava pelo comércio, pelo fluxo migratório e agora pela imagem técnica, particularmente a fotográfica, que encontrou no postal seu suporte precioso para democratizar a cultura e conhecimento”, refere Fernandes Junior no capítulo “A Cidade Multiplicada” do livro Guilherme Gaensly.
No dispositivo de um cartão-postal em funcionamento, a fotografia de uma vista funciona como uma imagem relativamente atemporal, esquiva em relação a uma datação, e é isso que parece capacitá-la a transmitir uma memória de uma vivência atual, de uma experiência enquanto atualidade. No caso do colecionismo, com o adensar do tempo ele adquire, como aqui, uma outra temporalidade: torna-se souvenir da própria ideia de passado.
Mas rege-o, em ambos os casos, o signo da incompletude, do fragmento. Ou seja, enquanto miniatura, o cartão-postal parece instigar uma permanente necessidade de apropriação imagética do mundo, no caso, do gesto de colecionar ou revisitar uma coleção já estabelecida do mundo conhecido mas do qual se está ausente. Aliás, mais precisamente, de um mundo ele próprio já ausente enquanto figuração ali apresentada.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.