Cimeira da NATO debate hoje em Madrid novo estatuto da Rússia, que em Lisboa em 2010 era parceira
A Rússia vai estar no centro da cimeira da NATO em Madrid como "inimiga", depois de ter estado como parceira na de Lisboa, em 2010, quando foi aprovada a estratégia aliada que será agora atualizada.
"A NATO não constitui uma ameaça para a Rússia", proclama o conceito estratégico da Aliança que vai ser revisto em Madrid, na cimeira desta semana, no quadro de uma nova realidade criada pela invasão da Ucrânia pela Rússia.
O documento ainda em vigor foi aprovado em Lisboa pelos líderes dos 28 países que então integravam a NATO, grupo que incluía Barack Obama, Angela Merkel, François Sarkozy, David Cameron, Silvio Berlusconi ou José Luís Zapatero.
A recebê-los em 19 e 20 de novembro de 2010, Portugal tinha como anfitriões Aníbal Cavaco Silva, na reta final do seu primeiro mandato presidencial, e José Sócrates, que viria a demitir-se do cargo de primeiro-ministro quatro meses depois, em março de 2011.
Lisboa foi a "capital" da política mundial nesses dois dias, ao acolher não só os líderes da NATO, mas também os presidentes da Rússia, Dmitri Medvedev, do Afeganistão, Hamid Karzai, da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, ou o chefe da ONU, Ban Ki-moon.
A par da Rússia, o Afeganistão estava então sob a atenção mediática.
Em Lisboa, a NATO (sigla inglesa da Organização do Tratado do Atlântico Norte) decidiu começar a reduzir os efetivos militares no país asiático em 2011, e transferir o controlo da segurança para os afegãos em 2014.
No dia destas decisões, os talibãs, afastados do poder com a invasão dos Estados Unidos da América (EUA) em 2001, declararam que a NATO estava "condenada à derrota" no Afeganistão.
Em 2021, após 20 anos de presença militar e de centenas de milhares de mortos, os aliados saíram do Afeganistão e os talibãs restauraram o seu regime fundamentalista e extremista.
A cimeira de há 12 anos também ficou marcada pela primeira reunião NATO-Rússia após a guerra de cinco dias entre a Rússia e a Geórgia por causa da Ossétia do Sul, em 2008.
Este foi um dos muitos episódios da relação de altos e baixos entre Moscovo e o Ocidente desde a dissolução da União Soviética, em 1991, que também passou por divergências sobre a intervenção da NATO na guerra do Kosovo, em 1999.
Vladimir Putin, que completa 70 anos em 07 de outubro, assumiu interinamente a Presidência russa no final de 1999, antes de se tornar Presidente em maio do ano seguinte.
Para ultrapassar limitações constitucionais, passou a primeiro-ministro em maio de 2008, cargo que ocupava durante a cimeira de Lisboa, para retomar as funções presidenciais em 2012, que ainda mantém.
Foi com Putin a liderar a Rússia que as relações com a NATO e o Ocidente mais se deterioraram, e em duas ocasiões por causa da Ucrânia: em 2014, com a anexação da península da Crimeia, e com a atual guerra iniciada com a invasão de 24 de fevereiro.
Mas, em 2010, não era esse o ambiente em Lisboa, apesar de a NATO já contar com vários dos países da esfera soviética -- incluindo Polónia, Roménia e os três Estados do Báltico, Estónia, Letónia e Lituânia.
"Medvedev em 2010 é diferente de Putin em 2008", comentou em Lisboa o então Presidente francês, Nicolas Sarkozy, sobre a diferença das relações com Moscovo em comparação com o ambiente da cimeira que tinha ocorrido dois anos antes, em Bucareste.
Com o alargamento a leste, um dos argumentos de Putin para justificar a crise atual, a NATO passou de 16 para os 28 membros que tinha na cimeira de Lisboa (atualmente, são 30 com as adesões do Montenegro, em 2017, e da Macedónia do Norte, em 2020).
"Os dois ex-inimigos da Guerra Fria concordaram que não constituem uma ameaça recíproca" proclamou, no final da cimeira de Lisboa, o então secretário-geral da NATO, o dinamarquês Anders Fogh Rasmussen (2009-2014).
As declarações dos líderes mundiais presentes em Lisboa foram quase todas nesse sentido e o próprio Medvedev -- atual vice-presidente do Conselho de Segurança russo e um dos mais fervorosos críticos do Ocidente -- falava numa "cooperação produtiva" e numa "relação de parceria".
"Constatámos que o período de relações frias foi realmente concluído. Olhamos para o futuro com otimismo e tentamos fomentar as relações entre a Rússia e a NATO em todos os campos", prometeu em Lisboa.
Embora sem antever que pudesse acontecer num futuro próximo, Medvedev chegou até a admitir em Lisboa que uma adesão da Rússia à NATO poderia ser um "tópico aberto para debate" se houvesse "boa vontade e desejo" dos membros da Aliança.
Medvedev encontrou-se a sós com Obama em Lisboa, à margem da cimeira, e "tiveram uma conversa muito cordial", segundo a Presidência norte-americana.
Revisitando as declarações da cimeira de Lisboa, quase todos os dirigentes falaram no "fim da Guerra Fria" e no início de uma "parceria estratégica" para caracterizar as relações NATO-Rússia.
Na véspera da cimeira, Serguei Lavrov, então já ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, disse que esperava que em Lisboa se pudesse "fixar o fim do período depois da Guerra Fria".
Augusto Santos Silva, ministro da Defesa na altura, definiu o novo conceito estratégico de Lisboa como o "enterrar de vez das sequelas da Guerra Fria", depois de o documento de 1991 ainda ter refletido a "ressaca da queda do Muro de Berlim" e o de 1999 traduzido o "conceito dos vencedores da Guerra Fria".
"Hoje, trata-se de dizer, 'nós não temos adversários, a Rússia não é adversária da NATO nem sequer é rival, a NATO não é adversária da Rússia nem sequer é rival, são parceiros", declarou em 2010.
De novo, Sarkozy: "A Guerra Fria acabou, a URSS acabou, o Pacto de Varsóvia acabou. A história do século XX deixou feridas, como sabem a França e a Alemanha. Mas o fim da Guerra Fria abre a página de uma nova relação confiante e pacificada com os russos".
"Assistir a esta cimeira, ver os EUA, a Rússia, a Alemanha, a Polónia a trabalhar na mesma direção, a cooperar nos grandes assuntos da segurança coletiva internacional representa um acontecimento histórico e uma notícia extraordinária", entusiasmou-se Zapatero.
"Viemos a Lisboa com uma tarefa chave, que era revitalizar a nossa Aliança para estar ao nível dos desafios dos nossos tempos. Foi isso que fizemos", congratulou-se Obama.
Cavaco tinha a certeza de que Lisboa seria "recordada como um marco na História" da NATO e Sócrates dava razão ao que dizia sempre ter defendido: que a nova relação com a Rússia correspondesse a "uma atitude de diálogo e de cooperação, em vez de uma atitude crispada".
Lisboa parecia o início de uma nova era geopolítica, tal era o entusiasmo em torno da "nova" Rússia, mas lá longe, a China desconfiava de tanta "declaração de amor".
"Parceiros com uma longa história de desconfiança mútua não se podem transformar rapidamente num casal apaixonado", sentenciou a agência oficial Xinhua, num comentário político aos resultados da cimeira na capital portuguesa.
Quatro anos depois, tudo mudou novamente, por causa da Ucrânia.
Viktor Ianukovitch, o Presidente pró-Moscovo da Ucrânia, foi deposto em fevereiro de 2014, na sequência de um vasto movimento popular de contestação por recusar a integração europeia.
Dias depois, a Rússia invadiu a Ucrânia, de que resultou a anexação da península da Crimeia e uma guerra separatista pró-russa no Donbass (leste), que provocou cerca de 14.000 mortos.
Oito anos depois, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia voltou a invadir a Ucrânia e o Donbass é hoje palco das mais duras batalhas de uma guerra que cavou um fosso enorme, quem sabe se intransponível, entre o Ocidente e a Rússia de Putin.