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Saúde em Portugal

Adoecer em Portugal era difícil há cerca de 50 anos, quando a frase:“ a medicina é a primeira das ciências enquanto a saúde fôr o primeiro dos bens”

era habitual nos corredores da Faculdade de Medicina, dita com muita presunção e água-benta, mais para aborrecer os amigos não estudantes de Medicina, do que a convicção com que era dita quereria demonstrar.

Na realidade, até podemos aceitar que a medicina pode não ser uma ciência em si, mas sim um conjunto de ciências que promovem o conhecimento e que, devidamente agregadas, se transformam em Medicina.

A Química, a Física, a Biologia, a Fisiologia, a Matemática, a Farmacologia, a Matemática, todas as ciências ditas exactas promovem o conhecimento através da experiência, da tentativa e erro, de mais experiência uma e outra vez, até chegar a um resultado final seguro, enquanto a Medicina é, talvez, uma filosofia que une o conhecimento gerado pelas chamadas Ciências Exactas a uma base filosófica, com o serviço ao próximo, aos que sofrem, a ser o aglutinador e catalisador dessa união de conhecimentos.

A Medicina em si não é sinónimo de Saúde, mas contribui para a Saúde. Esta é definida pela Organização Mundial de Saúde como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades". A saúde não é um bem individual; é um valor colectivo, um bem de todos, devendo cada um gozá-la individualmente, sem prejuízo de outrem e, solidariamente, com todos, tal como a Medicina e a Enfermagem e todas as áreas Especializadas que comungam as mesmas finalidades são uma união de conhecimentos vindos de muita áreas distintas.

Por isso, falar de Saúde como mais um artigo de jogo político vai enviesar conhecimentos, pois as abordagens políticas não são, habitualmente, baseadas em conhecimento científico e sim, também habitualmente, em convicções de ordem pessoal que não passaram pelo crivo da experimentação, da hipótese conducente a uma tese testada e re-testada até um resultado seguro e fiável.

A Saúde vai muito além dos espaços físicos onde, convergindo para um bem estar comum, as várias vertentes dos cuidados a ela conducentes, desde o primeiro acto administrativo até à consulta médica e seu respectivo seguimento, se juntam.

Assim, todos os actos interligados, administrativos, de enfermagem, de exames auxiliares de diagnóstico, de consulta médica, necessitam de um espaço físico para se poderem efectivar. Um consultório, um centro de saúde, um hospital personificam esse espaço físico, sem o qual os cuidados necessários para que a Saúde se possa desenvolver não terão capacidade de resposta eficaz.

Mas, sendo, também, uma abordagem filosófica de convergência de conhecimentos, deve, por isso mesmo, ser esse o ponto de partida para uma abordagem global.

Podemos ter um hospital, um centro de saúde, um consultório muito bem acabados e muito bem equipados que se lá não morar um conceito, de nada vale. Quer dizer, far-se-ão consultas e exames, mas não terão bons cuidados de saúde como resultado final.

Para que o resultado final seja eficiente e satisfatório, é necessária a conjugação de esforços de todos os intervenientes, incluindo o respeito pelo espaço de cada um, sem atropelos, em cooperação. A relação inter-pares é fundamental para a satisfação final do doente (utente em termos mais actuais e mais politicamente correcto), bem como de todos quantos são chamados a colaborar para essa finalidade. A motivação traz a satisfação, a desmotivação carrega a insatisfação.

A insatisfação dos profissionais que em conjunto trabalham para que a Saúde seja eficaz, conduz, inevitavelmente, à insatisfação do doente (utente).

E não é por ser novo que passa a ser melhor.

Podemos ir num Mercedes topo de gama com 120000 km ou num FIAT 500 novo (passem as publicidades) de Lisboa até Bragança que levaremos, cumprindo as regras de boa condução, sensivelmente o mesmo tempo, mas provavelmente iremos mais confortáveis no primeiro. Isto é, não é por ser novo que é melhor. Só é melhor se o conteúdo for melhor.

Era difícil adoecer em Portugal há cinquenta anos.

Não havia hospitais em quantidade e qualidade, os médicos dedicavam-se aos seus consultórios e clínicas onde atendiam quem podia pagar e o povo tinha direito às Caixas de Previdência onde eram atendidos um pouco como sardinha em lata. Com o advento da função social do Estado fruto da revolução de 25 de Abril foi criado o Serviço Nacional de Saúde, um pouco à imagem dos serviços semelhantes existentes no Reino Unido e países nórdicos onde era o Estado a prover as necessidades em termos de cuidados de saúde às populações, independentemente do seu estrato social e económico. Implementou-se também nas Faculdades de Medicina um forte sentido de dever público que levou alguns milhares de jovens médicos a aderir sem reservas ao Serviço Nacional de Saúde. Foram definidas carreiras e, apesar do ordenado não ser muito aliciante, garantia emprego para o futuro. Nos primórdios do SNS, não havia muita preocupação com os horários nem com as horas extraordinárias não contabilizadas, já que o que mais interessava era o serviço que era prestado.

Mas o SNS nasceu enviesado, com uma forte base de hospitalocracia, isto é, baseava a sua estrutura nos hospitais, que eram a parte fundamental do sistema, secundarizando a importância dos cuidados primários, esquecendo que a relação cuidados primários/cuidados hospitalares deveria ser a base da pirâmide, já que os doentes (depois apelidados de utentes) devem ir dos primeiros para os segundos e não destes para aqueles como tantas vezes acontece. E esta relação interpares deve ser personalizada, de médico a médico e não impessoal de serviço hospitalar para centro de saúde ou vice-versa, perdendo-se assim a relação directa de confiança que tem de existir entre pares do mesmo ofício que tratam do mesmo paciente.

Entretanto foram aparecendo, em contraponto às estruturas públicas, os hospitais privados que foram ganhando espaço devido à ineficiente (e inexistente) mudança de mentalidades indispensável para que se tornasse atractivo o sentido de “dever” público, isto é, trabalhar para quem mais necessita. A atracção por melhores remunerações em actividade privada fez com que muitos jovens optassem por esta em detrimento daquela, e assim chegámos onde estamos agora.

Muitas vezes, o “primeiro dos bens” já referido, serve para, também muitas vezes, captar atenções, precisamente por ser um bem essencial ao bem estar físico, mental e social. Uma estrutura nova pode ser uma forma de cuidados paliativos para uma mentalidade velha.

Há que olhar para a pirâmide, tal como Maslow descreveu, de baixo para cima, começando pela base, e não de cima para baixo, só para satisfazer egos, transversais a todos quantos querem fazer sua “a primeira das ciências” (que já vimos não o ser) só porque necessitam de “satisfazer” o primeiro dos bens de tantos quantos depositam votos de quando em vez.

Podemos, devemos, sabemos, fazer melhor.

Mas, para isso, é indispensável mudar paradigmas e mentalidades, a começar pelas dos responsáveis políticos.