Cartões postais “lançados abertos como são”*
“Encontradas mais de 20 mil cartas por entregar em casa de antigo carteiro”, anunciava uma manchete de uma qualquer fonte noticiosa na qual me detive por breves instantes a semana passada. O caso terá ocorrido em Alicante e fez-me particularmente pensar nessa missiva curiosa que são os postais, “lançados abertos como são”, ao invés da carta, mais propícia ao sigilo e à intimidade, ainda que ambos sempre sujeitos a um desvio de rota, a uma alteração de destinatário, ou a um silêncio suspenso até que alguém os descubra, os veja, os leia. Fez-me igualmente pensar num livro que até então não tinha tido a oportunidade de ler (ou ver) com a atenção que o mesmo merece. Trata-se de uma edição do ano passado da Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira, intitulada Memórias do Porto Santo e da Madeira – O Bilhete-Postal Ilustrado até ao início dos anos sessenta do Século XX. O autor, José Manuel Melim Mendes, é Engenheiro Químico e Engenheiro de Minas formado pelo Instituto Superior Técnico e colecionador de um vasto conjunto de postais do qual ali consta uma pequena seleção. Uma primeira coleção de postais da cidade do Funchal terá estado na origem de uma outra publicação de sua autoria lançada em 2008, aquando das comemorações dos 500 anos da elevação do Funchal a cidade, baseando-se esta numa segunda coleção de cerca de sete mil postais sobre a Madeira e o Porto Santo, editados pela Delegação de Turismo, ateliês fotográfico e casas comerciais, e a qual fez “crescer ao longo da vida” – Melim Mendes terá iniciado a coleção aos oito anos, incentivado pelo pai.
No preâmbulo do livro, refere-se sucintamente a história do formato - os bilhetes-postais circularam pela primeira vez na Áustria (então, Império Austro-Húngaro) a 1 de outubro de 1869 - e destaca-se a sua simplicidade. “Um lado com o selo impresso e as linhas para endereço. O lado oposto, totalmente em branco, destinado à missiva.” (pág. 17). O autor acrescenta que na “Madeira, alguns dos principais fotógrafos, de pujança assinalável desde os primórdios da fotografia, iniciaram a edição de postais ilustrados nos anos 90 do século XIX.” (pág. 18)
Tal como é generosa a partilha das vistas colecionadas ao longo de uma vida, é também generosa a partilha por parte de Melim Mendes das suas próprias memórias e impressões dos postais, salientando que estes foram fundamentais para “reviver” o conhecimento da sua terra, funcionando como “janelas para o passado acontecido” (pág. 16).
O bilhete-postal, então. Quando fora do âmbito do colecionismo, quando em função de missiva, o seu formato potencia uma associação imediata entre elementos visuais e a escrita pessoal. O algo de que o souvenir sob a forma de cartão postal é memória encarnada na superfície do papel é (também) a ambígua relação entre lugar e tempo. Por um lado, a experiência do lugar representado no postal é, normalmente, localizável no tempo de forma precisa através da datação feita no verso (referente à data da escrita/do envio). Por outro lado, o valor indicial, de “passado acontecido” do fotográfico, não parece ser exatamente uma valência do cartão-postal, sendo muito mais próprio da fotografia de família, por exemplo. Ou seja, o seu poder de semelhança a algo (o seu poder icónico), tal como uma paisagem, é mais expressivo do que esse valor de marca de uma temporalidade intrínseca ao ato fotográfico: o seu apelo dissocia-se de um momento ou de um evento ocorrido num tempo específico ao clique do obturador. Por outras palavras, ao recebermos um postal (na altura em que os recebíamos), não (nos) interessava saber em que situação a imagem que segurávamos nas mãos tinha sido feita. Interessava sim que esta fosse passível de um efeito de atualidade de forma a poder ser adaptável ao tempo do seu emissor, da missiva em jogo: exemplo, “estou aqui, neste momento em que escrevo, no Porto Santo, no Porto Santo aqui representado na imagem, a qual foi tirada no Porto Santo, embora este Porto Santo não seja o do momento desta imagem. E daqui, hoje, ao escrever, envio-te as melhoras!”. É pela escrita personalizada que o postal se torna num souvenir de um determinado ‘agora’ (embora a fotografia retrate um ‘então’), um ‘agora’ tangível ao momento da escrita, ficcionado como sendo contíguo ao da futura receção, através do esforço não do colecionismo mas da própria correspondência.
Correspondente foi igualmente uma das poucas imagens de postais “antigos” selecionados e para mim enviados pela equipa do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s para a escrita deste texto, com uma das primeiras imagens (dos postais) do livro de Melim Mendes, o qual começa, portanto, com postais do Porto Santo. No livro, o postal não vem associado a uma mensagem pessoal escrita no verso, mas a uma legenda que esclarece o leitor: “close-up do comité de recepção e detalhes do desembarque às costas dos carregadores. Note-se que, à chegada, alguns dos cavalheiros veraneantes envergam fato, gravata e chapéu!”.
Um único bilhete-postal, portanto, mas cujas diferentes cópias, a que hoje podemos ter o privilégio (e sorte) de aceder através da sua reprodução em livro, digitalmente, (etc.) e através da sua conservação pelos arquivistas ou colecionadores, são passíveis de assumir sentidos diferentes, tal como toda a missiva lançada ao mar.
* Guia do Viajante do Rio de Janeiro de Alfredo Vale citado por BERGER, Paulo, O Rio de Ontem no Cartão Postal 1900-1930. Rio de Janeiro: Rio Arte, 1986, pp. 8.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.