Crónicas

E de como se fazia dinheiro com quase tudo

Os caminhos serpenteavam a encosta até às casas, era ali que vivia o povo. Os ricos moravam mais abaixo, mais perto do mar, tinha outro clima e outros modos que, lá por cima, onde era preciso dar muitas voltas na estrada, a história fazia-se naquelas casas viradas a sul, com duas janelas, uma porta, um terreiro de flores e, às vezes, uma latada de uva americana. Aqui e ali, saltavam à vista as casas de sobrado dos que tinham feito fortuna no Curaçau e na Venezuela; os outros, a maioria de nós, acomodava-se num piso e fazia o que podia para vencer aquele aperto constante, tudo derivado da falta de dinheiro

Eu cresci numa dessas casas e numa família com terras e muita falta de dinheiro. O que, de certa maneira, me colocava num lugar estranho. Havia a fazenda do meu avô e de lá vinham bananas, canas, uvas, feijão e ameixas até fartar e, depois, havia a nossa vida de todos dos dias e essa custava dinheiro. O meu pai trabalhava sábados e, às vezes, aos domingos. A minha mãe bordava de manhã, de tarde e à noite ou então ia para o quintal virar os vasos das orquídeas ao contrário para sacudir as raízes, separar socas e multiplicar por mais orquídeas.

Os cântaros faziam fila dos dois lados do quintal e rodavam da sombra para o sol, arrastavam-se para evitar a chuva e o granizo que, lá por cima, caía quase todos os invernos. A minha mãe dedicava-se na esperança de fazer negócio. Em Abril, às vezes em Março, as mulheres das flores batiam à porta para comprar e lembro-me daquele regateio, a minha mãe a lamentar as dores nas costas e nos rins, que não era justo ser tão pouco. A senhora desculpava-se, que as hastes eram bonitas, mas as orquídeas eram das mais vulgares.

E, entre lamentos e desculpas, apanhavam-se as hastes, o dinheiro era metido debaixo do papel de oferta que forrava a primeira gaveta da cómoda, mas a minha mãe não escondia a desilusão, ficava a matutar, onde havia de encontrar aquelas espécies mais carnudas e de cores vivas que via nos arranjos da cidade? Não tinha maneira de ganhar a quem produzia aquilo, nem de competir com os jardins das casas ricas, onde floresciam flores raras. O que dava ali era o mesmo que crescia no terreiro das casas da vizinhança, estimadas e tratadas por mulheres como a minha mãe.

Mãos laboriosas que regavam, que trocavam bolbos como se fossem tesouros e passavam horas a falar das espécies, da melhor maneira de dispor, da terra mais apropriada, mesmo que todas soubessem que nunca iam derrotar os ricos que viviam mais abaixo, muitas curvas de caminho mais abaixo, onde o sol batia logo de manhã e não subia pela ribeira aquele ar frio que se entranhava nos nossos ossos e tolhia as plantas. As laranjas só ficavam boas em Março, os sapatinhos floresciam depois da Festa, quando o preço estava mais baixo e por aí a fora numa sucessão de azares que impediam a minha mãe de aumentar de forma significativa a reserva que guardava religiosamente na gaveta da cómoda.

O que não a impediu de resistir, de manter as suas orquídeas, os sapatinhos e, mais tarde, vários pés de estrelícias, de lhes dedicar atenções e muitas dores nas costas, de regatear os preçose e de os vender depois. A corrida podia estar perdida, não teria prémios na mostra da Festa da Flor no Ateneu, mas a minha mãe era uma mulher da ilha e gostava de flores e não se pode fugir do que somos. Este ano os seis vasos de orquídeas que restam e que me ficaram de herança floriram. E eu lembrei-me desta história, lembrei-me de a ouvir dizer que haveria de continuar no nosso jardim depois de morrer. As orquídeas provaram-me que era verdade.