Especular sobre as imagens
Pouco se sabe acerca das imagens hoje aqui reproduzidas. Foram aparentemente tiradas num estúdio de Mumbai, uma vez que no verso foi carimbado “Dadabhoy Byramjee Photographer” (assim mesmo, em inglês, com símbolo associado). Pertencem ao espólio de José Raphael Basto Machado (1900-1966), que foi o primeiro presidente da Delegação de Turismo da Madeira (entre 1947 e 1966). E crê-se serem herança familiar sua, uma vez que integram um álbum com outras cartes-de-visite bem distintas, por sua vez já produzidas no atelier Vicentes.
Ao olhar para estas fotografias e ao especular sobre o seu suporte de visualização em álbum e manuseamento por José Raphael Basto Machado e, provavelmente, por um outro homem ilustre da geração anterior, ecoa o ponto de vista do historiador Mauricio Lissovsky (em palavras aqui reproduzidas a propósito de outras imagens oitocentistas), que a construção imagética por tais homens de um mundo de imagens onde constam figuras familiares a par de personalidades reconhecidas na época (da política, cultura e ciência) se estabelece em contraponto com um mundo de imagens do “indecoroso e do selvagem”.
A exotização do “outro” não-branco e ocidental, a categorização dos seus costumes, labores e crenças, foi uma perspetiva fundamental para o desenvolvimento da disciplina antropológica, a qual viu na fotografia de cariz etnográfico um instrumento fundamental para a construção de uma visão científica sobre esse mesmo “outro”. Essas imagens portáteis tiveram, desde logo, ressonância a nível do turismo e sustentaram-se na divulgação global da reificação dessas tipificações do “outro” enquanto ser que exerce atividades específicas. Ora, como visível nestas fotografias, isso acarretou ao longo do último quartel de oitocentos uma verdadeira encenação daquilo que se pretendia natural nos estúdios fotográficos, construindo-se portanto cenas onde pessoas tornadas indígenas figuram perante a objetiva simulando a sua essência em cima de tapetes que se assemelhavam a chão e fundos pintados que pareciam habitats, e posando com artefatos determinados.
Porém, pelo seu poder tantas vezes definido como indicial, de nos reportar a um momento preciso ou à presença de um determinado sujeito, a fotografia escapa muitas das vezes aos sentidos para que foi construída ou na qual a queremos encerrar. Basta pensar, para a perturbação dessa significância, o que seria alguém “reconhecer” hoje aquelas personagens, não já como personagens, portanto, mas como pessoas com uma identidade específica.
Finalmente, referia já no último texto que aqui escrevi a imagem pertencente a esta “série” de uma mulher sentada numa cadeira que, encarando de forma direta a lente do fotógrafo, parece distinguir-se das demais. Sem ter pesquisado mais sobre fotografia produzida em contexto indiano – ressalve-se uma obra já de referência sobre a temática, Camera Indica: The Social Life of Indian Photographs de Christopher Pinney –, e não possuindo muitas referências de reconhecimento desse mesmo contexto, seria arriscado apontar que se trata da mostra de (no caso) uma mulher que, pertencendo a uma classe social mais alta, numa Índia colonizada, se rodeia de mobília ao estilo (ou com influências) do colonizador, sendo representada enquanto alguém que não labora. Nada mais do que especulações, provavelmente erradas, mas as quais, se perseguidas enquanto pistas, se revelam muitas das vezes fundamentais para a construção de uma leitura mais fidedigna sobre imagens das quais pouco ou nada sabemos.