Entusiasmos
1. Disco: “C’mon You Know”, de Liam Gallagher, é muito bom. Muito bom mesmo. Um magnífico regresso. O seu trabalho a solo mais interessante e não fica nada atrás daquilo que realizou com os Oásis. Um daqueles discos onde vale tudo, onde tudo é permitido experimentar, o que lhe dá, de um tema para o outro, uma variedade inesperada. Sem dúvida, e para mim, um sério candidato a disco do ano.
2. Livro: Garry Kasparov foi um dos mais brilhantes e geniais jogadores de xadrez de todos os tempos. Campeão do mundo por inúmeras vezes foram épicos os seus jogos contra o Big Blue, o computador programado para o derrotar, ficando mesmo no ar alguma manipulação na máquina quando esta conseguiu, finalmente, ganhar. Kasparov tornou-se depois uma das principais vozes contra Putin e a sua clique de “silovikis”. “O Inimigo que vem do frio” foi escrito pelo activista em 2015 e pretendia ser um aviso ao mundo sobre quem é o novo “czar” do Kremlin, o que representa e para onde quer ir. Foi mais um aviso que caiu em saco-roto. Bom de ler, para ficarmos com a ideia de que avisos foi coisa que não faltou.
3. Conheço Miguel Albuquerque há muitos anos. Não posso dizer que somos amigos, mas respeitamo-nos. Excelente conversador. Pessoa cordata e cordial que não tem nada a ver com o Presidente do PSD e do Governo, carregado de achismos, trapalhadas, entusiasmos sem sentido e detentor de um ar enfastiado com que aborda tudo o que vem à baila.
Impossível não seguir a sua carreira política. Com altos e baixos, o que mais me espanta são os seus entusiasmos.
Alguém ainda se lembra do Toco? Eu relembro. O Toco é uma arriba instável depois da Barreirinha. Tem uma praia de calhau de acesso complicado. Quando presidente da Câmara, Albuquerque, protagonizou e incentivou um projecto para aquela zona. Teria duas Marinas para 300 amarrações, construção e exploração de edifícios destinados a comércio, escritórios, habitação, hotelaria, equipamentos e serviços na frente marítima entre a praia da Barreirinha e o centro polivalente do Lazareto. Na altura, primeira década do século, custaria mais de 200 milhões de euros. Tudo feito como deve ser e com apoio do Governo Regional da altura. O projecto seria concretizado por privados e ganharia ao mar 50 mil metros quadrados. Seria dotado com um pavilhão multiusos, dois mil lugares para automóveis e teria a sua própria ETAR. Tudo à grande e à francesa, uma verdadeira revolução urbanística da cidade.
O Toco está lá. No mesmo sítio. E a megalomania não. Graças a Deus!
Não, não sou passadista, nem retrógrado. Fazem-me impressão estas coisas feitas por impulso, sem estudos. Estamos a falar da gestão da “coisa pública”. Gosto de ideias arrojadas, mas entre uma ideia e a sua realização, são inúmeros os passos a seguir de pés bem apoiados. O entusiasmo desmesurado, apoiado na falta de conhecimento, é o pior inimigo de uma boa ideia. Normalmente mata-a.
Anos mais tarde, já como presidente do Governo, mais um entusiasmo, o nosso Silicon Valley: o Brava Valley. Sustentado na existência da ACIN, um grande projecto tecnológico privado, que vingou à sua custa crescendo sustentadamente. Decorria o ano de 2016 e Albuquerque apresentava a Madeira como “um ‘hub’ de internacionalização da economia portuguesa e como praça internacional”. No entanto, esteve entre nós, recentemente, o Secretário de Estado da Internacionalização e nem uma palavra sobre o CINM. Na altura, numa tirada, apresentava o BRAVA VALEY como uma “aposta na educação e robótica, com robôs da lego e [com] vantagens nos impostos e na taxação do património”. Era, sem qualquer dúvida, projecto de importância estratégica para o desenvolvimento económico da Madeira. Até António Costa entrou na onda de entusiasmo. Entretanto, continuamos sem saber o “quando, como, quem e porquê”, só sabemos o “onde”. Desconhecem-se estudos que sustentem a ideia, que até poderia não ser má. A Startup Madeira criou na Ribeira Brava um polo, do qual de desconhece o uso. Na altura, a Secretaria Regional da Economia e do Turismo, anunciou uma brochura promocional, que ao que sei, não passou da capa. De vez em quando mexe-se no balde: uma tecnológica de Singapura, outra madeirense voltada para o mercado de Angola e Moçambique, a Altice.
Nas últimas autárquicas, porque o assunto veio à baila pela mão do autarca da Ribeira Brava, Albuquerque anuncia um Centro de Inteligência Artificial a ser instalado no conselho. Uma excelente ideia, uma vez que a inteligência orgânica é cada vez menos. Mas, até agora, nada.
E finalmente heis-vos chegados ao último dos entusiasmos: as criptomoedas. Para ficar claro, não tenho nada contra as mesmas, principalmente as Bitcoins, que me parecem estáveis (apesar das flutuações), apoiadas na oferta e na procura, e bem ancoradas no blockchain, o que lhes garante segurança e visibilidade. Não entrarei em grandes detalhes, até porque só sei o essencial. Em Miami o inglês, pouco mais do que macarrónico, de Miguel Albuquerque traduziu-se em inúmeras e díspares interpretações. Induziu um entusiasmo quase que ímpar, que levou outros a se apropriarem da euforia e a anunciarem a criação de uma moeda com apoio governamental (prontamente desmentido) e no encomendar de um estudo por 100 mil euros para se saber da viabilidade de uma moeda/cartão regional (prontamente abraçado).
Se isto vai para a frente ou não, logo se verá. Mas ainda há dias, vi e ouvi o Presidente a falar na RTP Madeira sobre este assunto tão entusiasmado, que não se conseguiu perceber nada.
Estou em pulgas para assistir ao próximo entusiasmo.
4. Por uma questão de facilidade aceitemos que as estruturas locais dos partidos têm personalidade jurídica, coisa que não têm. Utilizemos este facilitismo para aceitar que o PSD Madeira absteve-se, com os social-animalistas do PAN e os socialistas radicais do Livre, na votação final do Orçamento de Estado.
Por via da maioria absoluta do PS, os socialistas aprovariam, com normal facilidade o OE. Gostaria de saber das razões que levaram a essa abstenção. Tenho a impressão que a própria direcção da bancada parlamentar também gostaria. O argumento de que viram algumas propostas aprovadas, não pega. Foram-no na especialidade e isso é suficiente e só ficou bem aos socialistas. Não sou muito amigo de abstenções não justificadas com clareza. Teria sido de bom-tom ter entregue uma declaração de voto a justificar o acto. Não é que não descortine algumas das razões. Mas o NIM também encerra um SIM.
5. Em relação à Ucrânia socorro-me da Bíblia: “Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna.”
Mateus 5:33:37
Sendo eu um defensor acérrimo do diálogo e da ‘nuance’, não sou assim tão estúpido ao ponto de não saber haver momentos em que a escolha deve ser binária.
6. Dedicado aos meus amigos personalistas:
“A responsabilidade da crise da política é dos partidos. De facto, enquanto a tarefa de um partido político seria aquela de formar a classe dirigente, na realidade o que fazem é transferir para o Estado a ideologia deles, para influenciar o povo e, assim, impor as suas próprias ideias. Dessa maneira, os partidos, ao invés de realizarem um serviço à sociedade, tornam-se cúmplices de todas as formas de manipulação ideológica. É por esta razão que a revolução não pode ser feita nem articulada pelos partidos, pois na actualidade, são parte integrante do sistema que se quer derrubar”. Emmanuel Mounier, In Revista Esprit.