Artigos

Solidariedade de facto?

Há vontade em melhorar a coordenação e o fornecimento de dados estatísticos sobre as RUP

“A Europa não se fará de uma só vez, nem de acordo com um plano único. Será construída através de realizações concretas que comecem por criar uma solidariedade de facto”.

Atual, ainda que ecoe apenas uma vez por ano, a assinalar o Dia da Europa, esta frase de Schuman serve para nos lembrarmos que a União é um projeto dinâmico, em permanente construção, do qual fazemos parte e para o qual contribuímos, e que será aquilo que os seus obreiros quiserem, desde que os seus valores fundadores sejam respeitados.

Mote para dedicar este artigo à análise da Estratégia, recém-publicada pela Comissão Europeia, para as Regiões Ultraperiféricas

Um documento importante para nós, afinal a Madeira integra este grupo de nove regiões, que, juntas, somam 5 milhões de habitantes, ultrapassando em número a população de muitos Estados-Membros. Vale a pena, pois, olhar esta Estratégia para além da vaga apreciação “de que é positiva porque se foca nas pessoas”.

É, sim, positiva por ser mais um documento de referência e orientador dos decisores políticos para a inclusão das especificidades das RUP na definição das políticas europeias, de acordo com artigo 349º, inúmeras vezes esquecido ou subvertido. No documento, a Comissão compromete-se a lançar convites à apresentação de propostas, nas mais variadas áreas, exclusivos para as RUP, tendo sido um sinal positivo o desafio lançado aos jovens das ultraperiferias para o desenvolvimento de projetos locais, embora tenha algumas reservas sobre o impacto que poderão ter as dotações financeiras destinadas a cada projeto.

Também importante é o anuncio da plataforma - que se espera simplificada - com as oportunidades de financiamento, programas, iniciativas políticas, possibilidade de sinergias e parcerias com e para as RUP, para as suas PME, ONG e população, bem como a disponibilização de apoio técnico para o melhor aproveitamento destes instrumentos, pois parece-me que muitas vezes desconhecemos a verdadeira dimensão da janela de oportunidades e como as aproveitar.

Destaco ainda a vontade em melhorar a coordenação e o fornecimento de dados estatísticos sobre as RUP, para que possamos analisar o impacto das políticas europeias desenhadas. Igualmente positivo é a Comissão querer reforçar o diálogo com as autoridades locais e que estas tenham assento nos vários mecanismos consultivos, por exemplo, na definição de acordos de comércio livre, com grande impacto no escoamento dos nossos produtos. Neste documento, a Comissão reconhece as vantagens do nosso posicionamento geográfico.

Apesar de importante, tudo isto é muito pouco! De uma Estratégia europeia, assente numa base legal bem definida, esperava-se mais do executivo comunitário. A Comissão compromete-se com poucas “realizações concretas” e estruturantes, não apresentando um plano de ação devidamente calendarizado com metas concretas, optando por colocar o ónus nas autoridades nacionais e regionais.

O timing da sua publicação também merece crítica, pois não influencia as negociações já fechadas do quadro comunitário 2021-2027 e perderá força até às do próximo, que começará a ser negociado apenas por volta de 2025.

Ainda mais grave, surge no momento em que as RUP necessitam de proteção face à revisão do Regime do comércio de licenças de emissões de carbono e à definição da transição para combustíveis limpos nos transportes. Esta Estratégia simplesmente ignora os pedidos dos Presidentes das RUP e dos seus representantes nas várias instâncias, ficando estas regiões em risco de experienciar custos com transportes sem precedentes.

Ao mesmo tempo, esperava uma referência tranquilizadora face à política que se está a desenhar para as ilhas, que abusa da base legal das RUP para alcançar discriminações positivas, pelo que temo o efeito inverso, nomeadamente o “esvaziamento” do artigo que nos protege na União e que tanto custou a chancelar nos Tratados europeus. Assinalo ainda a ausência de compromisso para com o reforço do POSEI, o apoio à renovação das frotas nas RUP e os 85% do cofinanciamento para as RUP no FEADER.

Até junho, a Estratégia estará sob apreciação dos Estados-Membros. Oxalá Portugal consiga corrigir as lacunas do documento, que é o que tentaremos fazer no Parlamento, a fim de alcançar a tal “solidariedade de facto” para com as nossas Regiões Ultraperiféricas.