Crónicas

Um cantinho do céu

E, como dá trabalho viver nessa linha, essa corda bamba que nos atira para o lado das coisas más como tão depressa nos tira de lá, dá ideia que isto é um sem fim, um caminho que não leva a lado algum

O mundo sempre foi assim: terrível para uns, bom para outros, mas a maioria de nós vive a meio, no mais ou menos. E como dá trabalho viver nessa linha, essa corda bamba que nos atira para o lado das coisas más como tão depressa nos tira de lá, dá ideia que isto é um sem fim, um caminho que não leva a lado algum.

A rotina dos assuntos por concluir é cansativa. A minha mãe repetia muitas vezes quando lhe chegava o desalento que, na verdade, a vida era mais larga do que comprida. Perdi a conta das vezes que lhe ouvi o desabafo, sem paciência para aquele modo de existir, aquele limpa, arruma e cozinha que fazia os dias das mulheres. Pelo menos das mulheres do Laranjal dos anos 80, onde, já sabe, as coisas modernas levaram tempo a subir a encosta.

E, enquanto as outras senhoras se entretinham a cuidar da casa, a minha mãe preferia ocupar a cabeça com as notícias de um mundo complicado, cheio de guerras, fomes e tragédias. E era um mistério que a minha mãe fosse assim, que tivesse memória da bomba atómica - tinha ouvido comentar na venda entre os leiteiros - e que gostasse de ouvir notícias. Mesmo quando lhe metiam medo, que ela levava a sério o que dava na rádio e na televisão.

As vizinhas diziam que essas coisas lhes faziam mal à cabeça e para preocupações bastava o que tinham. Talvez fossem mais sensatas, a minha mãe também as tinha. O dinheiro, a doença que carregava desde os 30 anos, os filhos e um marido de feitio difícil. Não lhe faltavam problemas que, no Laranjal, a vida era a mesma para todos, numa certa democracia que une as classes trabalhadoras e os remediados, como se dizia nesse tempo.

E os remediados angustiavam-se com os preços que subiam, a falta de arroz, de leite, as greves e os autocarros que, volta e meia, ficavam sem travões a descer o Pico de São João. Ou as aulas que não começavam a tempo, as filas para tudo e a incerteza no que estava para vir. A minha mãe não desistia, mas apoquentava-se, não fosse tudo ficar ainda pior. À cautela ligava a rádio e ouvia as notícias, que era melhor saber do que ser apanhado desprevenido.

Era por isso que as vacinas estavam em dia, não viesse uma epidemia. E, todos os dias, nos doutrinava por causa da escola, que era para aproveitar. A oportunidade e o esforço que faziam, ela e o meu pai, vivendo naquele sem fim de trabalho, de preocupações e assuntos para resolver que, na meia idade, quase os engolia inteiros. E ainda assim, depois de ver as notícias, sorriam que, pronto, não iam para novos, nem para ricos, mas, ao menos, viviam num cantinho do céu.

E eu tenho pensado muito nisso. Já faltou mais para dizer o mesmo, depois de ver o noticiário com as bombas as esventrar cidades na Ucrânia e os tiroteios insanos na América, que matam velhos em supermercados e crianças na escola.