Crónicas

O bom, o mau e a epifania

O Governo anunciou que Portugal seria o país, na União Europeia, com o maior crescimento previsto para o PIB em 2022

19 crianças assassinadas, esta semana, numa escola no Texas. Desde 2009, nos Estados Unidos, registaram-se mais de 288 tiroteios em escolas. A crueldade dos números revela que o direito ao livre porte de arma nos Estados Unidos não é uma questão de liberdade e tem muito pouco a ver com a constituição americana. Hoje, no país que lidera o mundo livre, as armas são a principal causa de morte de jovens e crianças. Essa tragédia, com requinte medieval, perpetua-se à custa de propaganda organizada, políticos sem espinha dorsal e um lobby com bolsos fundos. O problema não é a facilidade com que se entra numa escola, mas a facilidade com que se compra uma arma.

O bom: A primeira Grande Rota

Na semana em que foi notícia a sobrecarga, real e repetidamente diagnosticada, de alguns percursos recomendados, o anúncio da criação da primeira grande rota da Madeira traz esperança ao turismo e entusiasmo a quem dele vive. O projeto que será desenvolvido pelo Instituto de Florestas e Conservação da Natureza propõe-se a criar um grande percurso recomendado, composto por percursos de menor extensão, que atravessará a ilha de lés a lés. Ao longo de 85 quilómetros de trilhos, caminhos e levadas, os caminhantes terão a hipótese de pernoitar em pontos intermédios, à imagem do que já se faz, com inegável sucesso, no Caminho de Santiago, no Monte Branco ou nos Dolomitas. A nova Grande Rota não resolverá o desafio da sobrelotação de percursos, mas permitirá requalificar muitos dos percursos já existentes e acrescentará um importante novo segmento ao nosso destino. O valor acrescentado das grandes rotas oferece uma nova dimensão aos percursos pedestres e permite captar um mercado muito mais amplo do que habitualmente nos visita. Talvez o entusiasmo me denuncie. Recordo-me da primeira vez que atravessei o percurso entre o Pico Ruivo e o Pico do Areeiro. Há, entre picos, uma comoção que não se explica. A cada viragem, há reverência pela dimensão natural do que vemos. É essa majestosidade que nos distingue e que nos torna num destino único. As grandes e as pequenas rotas colocam-nos em contacto com tudo isso – o silêncio desarmante da floresta ou o tumulto de um curso de água que parece correr sem fim. O percurso é o mesmo para todos, mas o caminho é de cada um.

O mau: O anunciado crescimento económico

Com júbilo e ao som de trombetas, o Governo anunciou que Portugal seria o país, na União Europeia, com o maior crescimento previsto para o PIB em 2022. Os dados são da Comissão Europeia e antecipam uma surpreendente subida de 5,8% do PIB português em relação a 2021. Rapidamente, desfraldaram-se as bandeiras da competitividade da economia portuguesa, elevaram-se os estandartes da solidez económica, entoaram-se hinos às start-ups, unicórnios e figuras fantásticas afins. Até que, no paraíso da economia imaginária, a realidade bateu à porta. O crescimento recorde em 2022 é feito à custa da vertiginosa queda do PIB em 2020, ou seja, qualquer recuperação posterior da economia portuguesa, por partir de uma base pior, pareceria sempre maior do que é na realidade. Como quase tudo na governação, a estatística foi transformada em entretenimento político. A culpa não é dos números, mas de quem os retorce em função da encomenda. Se compararmos o PIB português de 2022 com o ano de 2019, o último ano pré-pandemia, passamos do 1.º lugar para um deprimente 20.º em 27 países europeus. Então, o crescimento recorde de 5,8% do PIB dilui-se num crescimento anémico de 1,7%. Mas há mais informação que a propaganda tentou esconder. A mesma Comissão Europeia que previu um crescimento entusiasmante para 2022, alertou-nos para o regresso à normalidade já em 2023, com um crescimento previsto do PIB português de 2,7%. Para além de desanimadora, a previsão europeia revela-nos que o crescimento que o governo português quis celebrar não tem qualquer carácter estrutural, é meramente circunstancial e revela que há muito a fazer no relançamento da economia nacional.

A epifania: O PAN e a licença menstrual

Fez-se luz na cabeça da solitária deputada do PAN. Nesse vastíssimo espaço de intelectualidade, acendeu-se uma pequeníssima lâmpada e brilhou uma luz trémula que produziu uma interessante proposta de alteração ao Orçamento do Estado. Por inspiração espanhola, o PAN propôs a criação de uma licença menstrual de três dias. Portanto, uma epifania menstrual em sede orçamental. Antes da opinião, vamos à proposta. “…o PAN propõe que também em Portugal se dê este avanço importante e que se preveja uma licença menstrual de 3 dias para as pessoas com útero que sofram de dores graves durante a menstruação.”. Lê-se e não se acredita. As pessoas com útero são, inesperadamente, as mulheres. As mesmas mulheres que o PAN quer proteger, mas cujo nome não se atreve a pronunciar. É pena que assim seja. É pena que se tenha reduzido um tema relevante e complexo, importante para tantas mulheres, a uma discussão alucinada sobre igualdade de género e linguagem inclusiva. Quando o assunto merecia um diálogo aberto e construtivo, que tivesse em conta situações clínicas como a endometriose e outras absolutamente impeditivas do trabalho, a iniciativa do PAN redundou num momento de ridicularização das mulheres e de repetido desprezo pela saúde sexual feminina. É o que acontece quando se saltita entre a defesa das pessoas, dos animais ou da natureza, conforme o sopro do vento das redes sociais.