Racionalidade, realidade e mitos
Repudiamos tudo o que ponha em causa o nosso mundo pessoal, credos, afectos, afinidades
Numa época, esta em que vivemos, em que a ciência, a racionalidade e a inteligência parecem imperar, se olharmos atentamente à volta, a realidade pode chocar-nos.
Constataremos, provavelmente, que nem sempre (ou raramente) as bases da história, da ciência e da palavra escrita dominam os instrumentos intelectuais e o raciocínio sólido.
As relações causais, a lógica, o pensamento crítico, a probabilidade e a correlação, a revisão por pares que permitem, quando bem utilizadas, ajustar as nossas crenças e tomar decisões e assumir posições baseadas na evidência e, consequentemente, fazermos escolhas racionais, sozinhos ou em grupo, é raro estarem presentes, na realidade.
Apesar do flagrante desenvolvimento do conhecimento humano em todas as áreas do saber, é frequente a “sabedoria folclórica”, o pensamento mágico, os mitos, as posturas conspirativas, as crenças absurdas e a incapacidade de distinguir dois modos de raciocínio: a mentalidade racional (procura da verdade) e a mentalidade da mitologia.
Há mesmo quem defenda, de um modo “politicamente correcto”, que o pensamento analítico deve subordinar-se à justiça social, à intuição e ao interesse circunstancial.
Só considerando grupos suficientemente alargados de “gente pensante” é possível identificar as possíveis falácias mútuas e, assim, poder aproximar-se da realidade e da verdade.
O panorama descrito, suportado pela facilidade actual de comunicar — rádio, televisão, telemóveis, imprensa escrita, computadores, internet, satélites, redes sociais… — permite entender a prevalência de mitos urbanos, notícias falsas, proliferação de religiões, seitas e credos diversos, falácias de todos os géneros.
É, por isso, possível haver acérrimos defensores da terra plana, do céu e do inferno, de fantasmas e almas do outro mundo, de forças maléficas e de protecções dos deuses, de que as vacinas provocam autismo ou injectam chips que visam o controlo da humanidade por grupos secretos, de que o homem nunca foi à Lua, das tenebrosas intenções de Bill Gates e outros ou de que Hillary Clinton era responsável por um esquema de tráfico sexual infantil.
Este estado de coisas não permite ter garantias de certeza nem sequer acerca das verdadeiras razões da actual guerra na Ucrânia, já para não falar de outros conflitos actuais. Isto é verdade, quer para as aparentemente maléficas acções do execrável Vladimir Putin, quer para a bondade de Volodymyr Zelensky, dos EUA e da União Europeia. A “verdade” é a primeira entidade a morrer, em tempo de guerra. A única verdade indesmentível é a do sofrimento do povo ucraniano.
Temos o mau hábito de considerar verdade ou realidade o que está de acordo com as nossas convicções, credos, orientação política, fervor clubístico e outros “sentimentos” que tais. Precisamos, desesperadamente, de ter certezas e suporte para a nossas convicções, de “ter razão”.
Repudiamos tudo o que ponha em causa o nosso mundo pessoal, credos, afectos, afinidades. O que nos obrigue a duvidar. A investigar e a colocar em confronto com opostos. A estabelecer contraditório. Tudo o que nos obriga a sair da nossa zona de conforto.
Apesar de nos considerarmos filhos do Iluminismo, a mente humana evoluiu adaptando-se à compreensão de acontecimentos remotos através de uma mentalidade mitológica.
Há uma tendência generalizada para tratar as crenças como verdades literais, já ninguém se lembra das prudentes palavras de Bertrand Russell: “É indesejável acreditar numa preposição, quando não há qualquer justificação para supô-la verdadeira”.