Crónicas

TêVer a guerra

A guerra iria ser rápida. A esta cómoda distância, com os ocidentais (todos nós...) feitos combatentes e estrategas de telejornal (um pouco como os treinadores de bancada), a guerra, dado o poderio militar do invasor e a moderna tecnologia envolvida, quase se fazia vender, inicialmente, como assética e praticamente “limpa” (como também se pretendia fazer passar, na altura, com a guerra do Iraque). Agora, três meses passados, ela deixou a nu todas essas mentiras improváveis, e consolida a única vertente que conhecemos: a da guerra-espetáculo. E a perceção de quanto é fácil aos humanos reeditar novas versões da barbárie.

A televisão gosta de guerra: em qualquer tempo, em qualquer latitude, ela garante audiências elevadas, e o investimento audiovisual na cobertura arriscada dos “cenários bélicos” é uma constante em crescendo nas guerras do século XXI. É certo que, agora, o tempo dado à guerra da Ucrânia tem vindo a diminuir nos telejornais, face ao que foi a omnipresença avassaladora do tema durante o primeiro mês de confrontos. Foi então que, de repente, os telejornais se encheram de comentadores anódinos e de retorcidos especialistas: não fazia ideia que tínhamos, em Portugal, tantos “eslavófilos”, politólogos e académicos versados na antiga e na nova “cortina de ferro”, mais os militares de gravata mui versados em estratégia, planos e táticas de combate, tratando por tu matérias esdrúxulas para o comum dos mortais, discorrendo com visível comprazimento sobre “jogos de guerra”, quase adivinhando o que Putin faria na semana seguinte...

Há um lado “voyeur” em cada espetador, real ou potencial, e a televisão sabe disso. Há mesmo canais que vivem disso — e o chouriço informativo vai-se enchendo, dia e noite, com histórias e imagens que mostram o lado mais negro da natureza humana. Mas, para além dessa casuística noticiosa, os desastres, a morte, as grandes desgraças e, particularmente, a guerra, súmula condensada de toda a catástrofe e negação do humano, geram sempre curiosidade e vontade de “ver” mais e mais... É compreensível, até pelas interrogações suscitadas sobre o nosso futuro iminente. Mas, o que temos agora é bem pior: no afã de superar a concorrência, a notícia serve(-nos) a guerra como... “espetáculo”. Dia após dia, a destruição, os cenários de apocalipse, os cadáveres pelo chão, o suspense, as vítimas da selvajaria emergindo como ratos dos escombros. Ontem, hoje, amanhã. Entrevistas e reportagens filhas do neorrealismo informativo. Estamos, obviamente, muito para lá dos “jogos de guerra” asséticos que deliciam os estrategas. Agora, temos a aquela “edição especial” em que o real supera a ficção: como nos filmes, até somos avisados antes para as imagens “eventualmente chocantes”. Mas a saturação de imagens leva à indiferença: o espetador-voyeur acaba por sucumbir ao cansaço; o espetáculo, como roda muito rodada e gasta, começa a perder “aderência”. E o público, farto de devastação e cadáveres à hora de jantar, sai dali, em busca do reality show mais próximo...

Não há guerras “limpas”, só nos ciberjogos. E na TV. Na repetição noticiosa, as imagens que ilustram o desastre humano da guerra não são “asséticas”, pois têm gente dentro, com muita dor e morte violentas. Ontem, hoje, amanhã. A sua saturação televisiva induz à naturalização do absurdo e à falsa perceção da guerra como destino quotidiano inelutável... Uma outra forma de banalização do mal.