Crónicas

“Eleuthérios”

A famosa “fraternidade” não conseguiu resgatar-te tinhas quase pudor de respirar e dizer-te vivo

Bom Amigo

Lá partiste, ontem, para a tua última morada. Diz o Evangelho que há muitas moradas na casa do Pai — certamente serás acolhido numa delas, à altura da tua bondade e da tua esperança.

Fiquei muito triste, Padre Eleutério, quando me disseram — de Lisboa, imagina — que tinhas partido de vez em busca do merecido repouso. Senti-me um bocado abalado, que é como sempre ficamos nestas ocasiões que antecipam o nosso próprio fim. Fui à procura de confirmação e de informação; percebi que o ar estava rarefeito e que, salvo alguma piedosa compaixão internetiana, nada havia a esclarecer. Procurei saber mais nos dias seguintes, mas pouco sobrava além de um pesado silêncio. Decidi que tínhamos que ter, então, uma última conversa, antes que mergulhes de vez na terra do esquecimento (apesar das conversas piedéticas por aí, mais ou menos em surdina).

Pois, o esquecimento — é ele que sepulta os “indispensáveis”, mas tu nunca quiseste ser um desses. Quanto ao esquecimento, neste caso, por agora só a memória nos pode disso resgatar.

Entre muitas coisas que poderia trazer ao de cima, são-me gratas as nossas conversas de 73 ou 74, quando, fresco de um curso de Sagrada Escritura e fluente nas “línguas mortas”, lá nos apareceste, do fundo da tua discrição, para uma série de aulas introdutórias ao curso teológico... Lembro-me particularmente de teres ficado com a “cadeira” de D. Maurílio, feito arcebispo de Évora. Tenho ainda memórias muito impressivas desses diálogos “peripatéticos”, que eram já uma tradição ali para os lados do Jasmineiro. E com que entusiasmo percebíamos que “as coisas” poderiam ser diferentes! Visto a esta distância, acho que foste bastante responsável por termos avançado com gosto para a “sagrada teologia”, pois aí víamos toda uma série de possibilidades e desafios. E, meu Deus, como era já marcante a questão da linguagem religiosa: afinal, de que é que falamos quando falamos de Deus? Que possibilidade temos, sequer, de falar? E de sermos ouvidos? E de haver nisso algum sentido, rodeados de imanência e secularização? Discutimos o livrinho do bispo anglicano que fez furor em fins de 60, “Honest To God”, e que contribuiu para outra controvérsia dos anos seguintes, a dos “teólogos da morte de Deus”... Novas ideias, impasses e interrogações, mas sobretudo a insatisfação pelas respostas codificadas, a perceção de que crer implicava sempre interpretar, pois havia homem e mundo fora dos manuais; e que seria preciso buscar e dizer, sempre de novo, em cada época, as razões de acreditar. De modo encarnado, mediando as situações e a linguagem do tempo que passa. Já então, como quem busca e interroga, como quem escuta o ruído mundo e observa o ar do tempo, e não como quem se embrulha com avidez confortável na dogmática que tudo segura e apazigua... Sim, ficámos nesse entendimento, e sei que ainda hoje, passados todos estes anos de profícuo trabalho académico e pastoral, a tua preocupação — e angústia? — se manteve e, até às últimas, andaria muito por aí. Dizem que morreste em silêncio e só. O costume. Morre-se mais ou menos como se vive. A famosa “fraternidade” não conseguiu resgatar-te, tinhas quase pudor de respirar e dizer-te vivo, e acabaram por não se realizar as kantianas “condições de possibilidade” de saíres do túnel onde tinhas entrado. Fizeste o que pudeste, foste estimado por muitos e ajudaste outros tantos a abrirem os olhos para a luz. Mas, diz-se que a graça não muda a natureza: o medo e a culpa são a morte em vida! O “diabo”, de que tanto ouvias falar por aí nos últimos tempos, não parava de rondar... E lá acabaste por partir, em silêncio e só, certamente com Deus, que é o único que verdadeiramente conhece os corações. Ficámos todos bastante entristecidos no último fim de semana. Fui à procura de mais informação sobre a tua vida nos últimos 30 anos: tinha-te perdido o rasto. Mas nem tiveste direito a uma pequena biografia póstuma. Apenas a subida honra de, 56 anos depois de ordenado, teres sido feito “padre cura” da vila onde nasceste!

“Eleuthérios”, libertador: como percebes, agora mais plenamente, o teu nome era todo um programa! Vai em paz. Cravejado de setas, o São Sebastião virá abraçar-te. Por cá, as coisas continuarão como de costume: vivendo habitualmente...