Os mandatos (não) são para cumprir até ao fim?
1. Propositadamente, é no dia em que se celebram os 48 anos sobre a data histórica da Revolução dos Cravos que começo a escrever estas linhas, não porque tenham qualquer conteúdo ou teor revolucionário, mas porque se relacionam diretamente com o nosso atual sistema político (onde existem forças ocultas e poderosas que militam contra a participação política dos cidadãos, assim como um combinado de interesses que nos mantém “reféns” de vulnerabilidades como o desemprego, pobreza, a precariedade laboral, quebra de rendimentos, sucessivas crises financeiras, económicas e sociais, mas também de resgates a grandes empresas públicas e da resolução ou saneamento de instituições bancárias…) e o seu maior bem e direito: a Liberdade.
Curiosamente, um mês antes de se celebrar mais um aniversário deste marcante acontecimento histórico nacional, um estudo do Centro de Estudos e Sondagens da Universidade Católica, que avaliou a relação dos portugueses com a Revolução dos Cravos, confidenciou, para surpresa de muitos (e de mim próprio), que a população entre os 25 e os 34 anos é a que mais observa/considera que este momento foi “muito importante”. Igualmente, são os jovens, as mulheres e os mais instruídos aqueles que mais valorizam o 25 de Abril. De acordo com algumas das conclusões exibidas, “inesperadamente” os jovens maiores de 16 anos avaliam o 25 de Abril de forma “muito positiva”, assim como a maioria (75% dos inquiridos), contrastando com apenas 2% da amostra que respondeu que a celebração não era importante. Este estudo de opinião indica ainda que só 4% dos inquiridos qualifica o 25 de Abril como “nada importante”. Num breve comentário, estes dados são decerto a expressão daquilo que engendraram as elites políticas que administraram Portugal no pós-25 de abril de 1974, vital para a imagem produzida em gerações que não presenciaram os factos, mas que também pouco (ou mesmo nada) aprenderam sobre eles nos anos em que frequentaram o sistema educativo português. Admitindo exceções, nos últimos anos tenho procurado inverter esta circunstância e fomentado nos meus jovens alunos (a chamada geração Z) uma certa curiosidade, investigação e reflexão crítica sobre o regime existente antes e do pós-25 de abril de 1974, e reproduzo aqui uma interessante e provocante consideração expressa por um deles, redigida em março de 2021:
«A perspetiva de futuro para os portugueses hoje em dia, apesar de ser melhor que a dos nossos pais, não está ao nível das nossas ambições, especialmente ao nível das da “geração Z”. Com isto, não há democracia que resista. Pobreza gera pobreza e ditadura. A história ensinou-nos isto e o presente comprova isso mesmo também: Brasil, Turquia, Bielorrússia, Polónia, Hungria e até França caminham a passos largos para um sistema autoritário e totalitário e Portugal pode ser o próximo caso medidas eficazes não sejam tomadas nesse sentido. Com o estado de emergência, a violação dos direitos do Homem banalizou-se em prol de um bem maior, a saúde pública. Os direitos universais do Homem pelos quais muitos portugueses lutaram no 25 de abril tornaram-se um meio para atingir um fim, chegando quase a ser dogmática a sua passagem para segundo plano. Ora, isto não é sinal de uma democracia saudável e certamente que este período de “desmocratização” é o espelho do crescente desrespeito pela mesma que se tem verificado ao longo dos últimos anos. Casos de corrupção por parte de entidades governamentais como desvios de verbas, cunhas para posições estratégicas, ocultação de documentos e registos importantes, entre outros. A democracia há muito que pedia socorro e agora que sentimos a sua importância graças à situação pandémica, relembramo-nos de algo, se nada é garantido na vida, porque haveria o sistema democrático de o ser? Temos assistido diariamente a um enfraquecimento das instituições e descredibilização das mesmas, observamos um autoritarismo crescente por parte do governo e, pior que tudo, um conformismo por parte de uma fatia da população em relação a isto. Não posso afirmar que Portugal é um país menos democrático do que era antes do 25 de abril, mas também não assumo que estejamos a caminhar num sentido saudável para democracia como a conhecemos hoje em dia. Há por isso uma importância acrescida à data da Revolução de Abril para nos relembrar da importância de lutar todos os dias pelos nossos direitos e pela nossa democracia. 47 anos se passaram e desta maneira mais 47 podem não voltar a passar, não sou eu que o digo, são os eleitores e as suas opções de voto. A democracia está em risco e urge reivindicar os valores de abril» (Tomás Freitas). Em suma, a liberdade e a democracia são imensamente frágeis e é preciso cuidar delas todos os dias dentro das nossas fronteiras, sem cedências, mas devemos também estar muito atentos ao que se passa para além delas.
2. No passado dia 30 de abril fez um mês que tomou posse (finalmente) o “novo” Governo – o XXIIIº Governo Constitucional (composto por 17 ministros [e pela primeira vez na história da democracia portuguesa com mais ministras do que ministros], 38 secretários de Estado e, novamente, encabeçado por António Costa) – e o Chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, no dia em que cada um dos elementos prestou juramento e assinou o auto de posse, fez questão, no seu discurso, de fazer um aviso específico a quem o comanda: inicia-se agora um novo ciclo, mas “não lhe deram nem poder absoluto nem ditadura de maioria. E na maioria absoluta cabem todos os diálogos sociais”. Por outras palavras, “deram a maioria absoluta a um partido, mas também a um homem” que deve levar o seu mandato até ao fim e este “é o preço das grandes vitórias, inevitavelmente pessoais e intencionalmente personalizadas (…) [e] é sobretudo o respeito da vontade inequivocamente expressa pelos portugueses para uma legislatura”. Marcelo, tendo presente o que ocorreu em 2004, deixou bem claro que voltará a dissolver a Assembleia da República, convocando eleições antecipadas, caso António Costa tenha até setembro ou outubro de 2026 outras ambições políticas e abandone o cargo, e por isso o Presidente foi alvo de diversas críticas. Contudo, Marcelo desta vez esteve bem! O insigne Professor Catedrático da Faculdade de Direito da UL sabe perfeitamente que uma eleição legislativa não é a eleição do primeiro-ministro, como alguns cidadãos pensam e certa comunicação social erroneamente apregoa. Na sua intervenção, Marcelo planeou ir mais além, quis recuperar alguma ética para a política (princípios, valores instituídos…) e por isso responsabilizou quem assume cargos eletivos, promessas e compromissos para com o país e os portugueses. (É um facto que hoje, com as devidas exceções, os políticos pensam quase exclusivamente na satisfação dos seus interesses/projetos pessoais e grupais, e secundarizam os cargos assumidos e as ambições/aspirações das populações que os elegem.) Marcelo deseja agora que aqueles que assumem um mandato político (com um definido período de duração) o cumpram até ao fim e não façam como alguns “profissionais da política” – que ambicionam construir uma carreira –, sobejamente conhecidos, que alguns dias depois tomarem posse, suspendam ou cessam individualmente os seus mandatos, porque anseiam por ‘voos mais altos’ na administração pública, em certas empresas do sector público, mas também por lugares de nomeação em prestigiadas organizações internacionais ou em instituições privadas que remuneram bem acima da média.
Ora, esta nova postura presidencial deixa bem clara uma posição que pretende apurar se a ética tem ainda alguma coisa a ver com a política, e em que medida ela pode contribuir para mitigar o progressivo afastamento, erosão e descrédito/desconfiança dos cidadãos para com esta ‘nobre’ atividade. Macelo Rebelo de Sousa assume e responsabiliza-se pelo atual grau de deterioração (e perigos) do nosso sistema democrático e, por isso, exige (agora) o máximo respeito pelas instituições e pelos cargos públicos eletivos exercidos, intimando um novo agir no espaço público do qual se espera (certamente) um proveitoso contributo para o desenvolvimento da coletividade. É verdade que não temos (nem podemos assegurar) governantes perfeitos, mas no mínimo que os titulares de cargos eletivos cumpram com toda a sua competência – e durante o tempo previsto – os mandatos que as regras constitucionais e legais prefixam. Recordo, ainda, que em democracia podemos (sempre) minimizar os erros/danos que os nossos governantes possam fazer, ao contrário do que acontece numa ditadura.