“Novilíngua”
Depois de ter ganho eleições em janeiro, o líder do PS permaneceu numa espécie de limbo — calmíssimo — durante dois meses (a pandemia, a votação dos emigrantes, o rebentar da guerra), com tempo de sobra para pensar as prioridades e o futuro executivo. Mas o país levava já com quase seis meses de “gestão corrente” ...
Depois, sem surpresas de maior, lá tomou posse um novo (quase velho) governo, apoiado em folgada maioria na Assembleia: agora sim, para quatro anos (e meio). Batizado, na propaganda, como um governo mais curto e enxuto, apenas porque tem menos dois ministros e “só” trinta e oito secretários de Estado, o que salta mais à vista é a opção pela segurança em vez da ousadia — a incapacidade de “pescar”, fora do lago socialista, nomes e figuras reconhecidas na sociedade civil, assim levando à pura reciclagem da orgânica e à recauchutagem de alguns titulares. Ou seja, o Largo do Rato de novo em peso lá em São Bento, de que são exemplos tristes a recondução da “impensável” ministra da agricultura, ou do execrável “secretário do lítio”, para não referir outros apparatchiks que enxameiam, com o seu pesado zumbido, os corredores desta maioria absoluta.
A tomada de posse ficou marcada pela inusitada tirada do Presidente ao nosso Primeiro, para o “amarrar” à cadeira da governação até 2026 e cortar cerce eventuais veleidades de fuga para Bruxelas — o que não deixa de ter o seu quê de caricato, e bastante marceliano, fazer um aviso destes numa cerimónia destas... Mas, o velho criador de factos políticos não dá ponto sem nó, o que fica desde logo demonstrado na reação azeda de ressequidas “ratazanas” socialistas: a única coisa a que o chefe está amarrado é ao povo que o elegeu! E, para logo afugentar maus presságios, lá foi ele dizendo, no seu discurso inicial e distribuidor de jogo para esta legislatura, que maioria absoluta não é poder absoluto... Pois não: viu-se logo, na eleição dos vices e secretários da nova mesa da Assembleia, a demonstração de uma enorme vocação para o diálogo, configurando-se uma espécie de “corredor sanitário” face a tudo o que fosse não-socialista.
Esta reescrita política do sentido primeiro das palavras — diálogo é abertura e boa-fé, e não imposição e cinismo — faz pensar numa versão propriamente “socialight” da “novilíngua” de Orwell, mas agora com uma presença muito mais difusa do Grande Irmão, que já não precisa de esmagar palavras e pensamentos “até ao osso” para criar a absoluta conformidade da Ideia com a realidade — pois a Ideia, sedutora, leve e brilhante, tudo envolve e tudo controla, ofusca toda a alternativa como não-pensamento e dissemina-se absolutamente, contando muito com a bela ajuda de um simples clique do novo “homo digitalis”.
O politicamente correto da ideologia e do regime, caldo de cultura da democracia de conformidade, vai, a pouco e pouco, rasurando antinomias e diferenças, a mentira passeia-se na praça pública vestida de verdade, a aparência é o que subsiste, não há traição, mas sobrevivência, e tudo o que importa é permanecer.
Não há poder sem gramática própria, que gera a cada tempo a sua “novilíngua”: apagar progressivamente as arestas, o errado passa por certo e a conformidade faz a maioria. Pois não: há um programa de governo tido por novo, mas afinal é o velho (a guerra não está lá) que a “novilíngua” faz passar, sem que haja assomo de rebeldia; e uma nova Assembleia absoluta repesca da agenda velha, novas “prioridades”: a eutanásia e as touradas... Absolutamente!