Sem ressentimentos, claro
A praia era um lugar de gente nova, de famílias com as mães enfiadas em fatos de banho grandes e a distribuir comida pela prole, sempre esfomeada
O dia amanheceu limpo e eu fiz-me ao caminho, um percurso que conheço de cor e que me leva às praias onde passei os verões dos últimos 35 anos. Ficam ali mesmo, perto, na linha de costa antes de jardins e hotéis, mas são como que um refúgio, um lugar onde estendo a toalha e desligo do mundo atrás de mim. Antes, quando saltava do 12 na paragem do Savoy com sandes de ovos mexidos e chouriço e bronzeador a cheirar a coco na mochila, pareciam mais longe, era preciso cortar por estradas rodeadas de canas e bananeiras.
E isso dava a sensação de ser outro mundo, muito diferente do que ficava lá em cima, no Laranjal, onde a vida era uma mistura estranha de campo, autocarros a forçar os travões na curva e música pedida a passar em alto e bom som nos rádios a pilhas da vizinhança. Ou as canções do Júlio Iglésias e do Roberto Carlos a rodar uma vez e outra vez no gira-discos. Perto do mar, soprava uma brisa que trazia bocados de conversas cortados pelo ‘splash’ de alguém a cair na água. As raparigas circulavam aos pares, enquanto grupos de rapazes patrulhavam a praia e uns e outros avaliavam-se.
As bonitas, os bonitos, os mais populares, os esquisitos e os outros todos, os invisíveis. A praia era um lugar de gente nova, de famílias com as mães enfiadas em fatos de banho grandes e a distribuir comida pela prole, sempre esfomeada. O ar do mar aguçava o apetite e era por isso que, a meio da manhã e, na verdade a todas as horas, havia fila para comprar wafles que nada fazia mais sucesso. Se calhar dividia o pódio com aquelas viagens alucinadas pelo tobogan abaixo, às vezes de pés e outras de cabeça. Eu entrara naquela idade em que somos metade crianças felizes e divertidas, metade adolescentes daquelas que reviram os olhos a tudo e sonham com príncipes.
A parte feliz, talvez a parte mais solar e simples, gostava do mar, do tobogan e de queimar o céu da boca com wafles acabadas de fazer. E essa parte de mim vivia dentro do corpo de uma adolescente, de biquini cor-de-rosa às riscas, cabelo revolto e pouco jeito para entender e usar as regras que ligavam os rapazes às raparigas. As histórias começavam sempre pelo olhar e, devo dizer, as miúdas da minha geração percebiam muito de olhares. Se um rapaz fixava muito e de uma certa maneira então era amor ou próximo disso. Lembro-me de pensar como podiam ter tanta certeza. E se aquele olhar fosse para outra rapariga ou fosse porque nos achava gorda demais ou apenas por estar distraído a olhar o vazio?
E do olhar – nesse jogo de tempo e intensidade – seguia-se para o passo seguinte: a delicada arte de ser apresentado ou meter conversa. Os mais atrevidos encontravam uma graçola, aproximavam-se com desculpas ou faziam apresentar por um amigo. Todos os grupos de rapazes tinham um que era popular, simpático, um tipo porreiro que não intimidava as raparigas e fazia as apresentações aos dois que, por andarem a arrastar a asa e se saber disso, ficavam meios zonzos e sem saber o que dizer. “És linda e gosto de ti” ou “és giro e ando a olhar para ti desde que começou o verão” talvez fosse o mais acertado, mas seria muita franqueza para espíritos tão jovens.
Talvez se consiga escrever, talvez seja mais fácil agora, mas para os adolescentes do meu tempo era terrível e assustador, exigia coragem e uma confiança que eu não tinha. Não percebia de olhares, não conseguia articular três frases que fizessem sentido no momento exacto das apresentações e não estava ainda preparada para desistir de mergulhar no mar, de correr para o tobogan ou deixar de comer com aquela convicção das crianças. E de como tudo isso me parecia o melhor da praia, mesmo que tenha alimentado, em segredo, uma ou outra paixoneta.
Sem ressentimentos, claro. A adolescente que eu era sabia que, se calhar, não tinha as qualidades para arrebatar corações como nos filmes e nos livros. E, nem por isso, deixei de apanhar o 12 para viver os melhores dias da minha adolescência.