De profundis
Esta guerra tem também sido condicionada pela intervenção externa
Na nossa literatura, De profundis aparece pelo menos, duas vezes. Em O Sargento-Mor de Vilar, de Arnaldo Gama, na figura de um pobre louco, e em José Cardoso Pires, no título da sua obra, De profundis – Valsa lenta, escrita na esteira de um AVC que o atingiu.
Tem a sua origem no Salmo 130: “Das profundezas clamo a ti, ó Senhor;
Ouve o meu grito! Que teus ouvidos estejam atentos ao meu pedido por graça!”
É um grito angustiado, adequado a ambas as obras e figuras literárias. E também apropriado para a irracionalidade da guerra que dilacera a Ucrânia, aqui (porque na Europa) e agora (porque no dia-dia das nossas casas).
A forma ligeira como se recorre àquilo que Clausewitz chamou a “ascensão aos extremos” é chocante. Dir-se-ia um regresso aos tempos da guerra como desporto ou como forma de purificação dos povos, amolecidos e degenerados por uma longa paz.
Poderia ser assim se não fosse o rasto de morte e destruição, não só de bens materiais, como de corpos e mentes.
Qualquer que seja o resultado desta guerra, as suas marcas perdurarão na destruição de casas, fábricas e campos, e também nos corpos mutilados e na mente dos sobreviventes.
Se, como dizem os entendidos, ninguém vai para a guerra e volta sem sequelas, teremos milhões de afetados, de ambos os lados do conflito. Com a agravante de que esta guerra, dita internacional, tem muito de guerra civil: é o confronto de duas comunidades que coexistiram durante séculos, e até a designação rus, origem de Rússia, teve origem na atual Ucrânia.
Num universo racionalista, até o irracional tem regras. Assim sendo, um plano de campanha deve conter o tratado de paz. Se é aceitável ou não, depende do desfecho. A História ensina-nos que se sabe como e quando começa uma guerra, mas não como e quando termina. E os resultados são por vezes surpreendentes. A título de exemplo, a guerra de Carlos V contra a Liga de Smalcald começou pela defesa da liberdade de religião e acabou com a aplicação do princípio “cuius regio, eius religio”; ou seja, competiria a cada rei definir a religião do seu país. Ou seja, passou-se de uma religião oficial para outra, e a liberdade de culto ficou para as calendas gregas…
Esta guerra tem também sido condicionada pela intervenção externa, em que cada passo é cuidadosamente medido em função das possíveis consequências.
Daí os apelos de Zelensky à intervenção externa, as ameaças de Putin se tal se concretizar, a indefinição da China, a expectativa dos asiáticos e a quase indiferença dos africanos (estes dois últimos com más memórias da intervenções externas).
E assim, das profundezas, clamamos para que os nossos gritos, e os de milhões de vítimas, sejam ouvidos, antes que seja tarde demais.