Crónicas

Mais que dinheiro

As ondas de choque chegam pelos preços, discutimos a inflação, mas eu penso muitas vezes nos que foram apanhados pela guerra na Ucrânia

Dois anos foram engolidos assim, num instante. Passaram depressa, a voar do confinamento para a variante seguinte do vírus, das vacinas ao movimento anti-vacinas, das duas máscaras de pano entregues por correio à promessa de que, lá para meio de Maio, deixam de ser obrigatórias em espaços fechados. É um toque de finados às polémicas que a pandemia alimentou. Os que são do “contra” - a palavra que na minha adolescência definia os que nunca estavam de acordo com a maioria – terão de encontrar outra fonte de inspiração.

Os outros, as pessoas comuns, esse imenso grupo do qual faço parte, podem respirar e arrumar a memória para contar a história daqui por uns anos a filhos e netos. E até chegue o momento em que a passagem do tempo ameniza as lembranças mais complicadas, o plano é viver um dia atrás do outro, com as rotinas e todos os sonhos grandiosos para caso de sair a lotaria ou o euromilhões. Pelo menos é o meu, mas isto dos planos e dos sonhos é pessoal e intransmissível. A mim nada me faz tanta falta como o aconchego das coisas de todos os dias. É nesse sossego que consigo pensar o futuro.

E o futuro é tão simples como saber se tenho dinheiro para as férias e para impermeabilizar o terraço da casa do Laranjal. Ou se vou encontrar vagar para ler os livros que acumulam pó na estante quando os dias parecem ser mais curtos, passam depressa e quase não há espaço para se sentar na esplanada e beber um refresco. A última vez que isso aconteceu estava com o meu irmão, pareceu-me um luxo ter um entardecer tão bonito e pouco em que pensar. Falámos de filmes e livros como na adolescência e pusemos de parte a pressa dos telefonemas a perguntar quem vai ao Laranjal ver a tia, a casa e os cães.

Para fixar um instante assim – algo tão fugaz como o por do sol – é preciso a paz de espírito da rotina. A ideia que, depois, há uma casa a onde voltar, um jantar na mesa e o conforto do sofá. E que isso não se consegue sem trabalho, sem passar os dias a correr, sem que tudo seja mais ou menos previsível. Quem tem é privilegiado, mas nem sempre percebe a sorte. A pandemia, com os seus confinamentos, as restrições para tudo e aqueles números diários de meter medo tirou-nos isso, esse privilégio de apreciar o momento que passa.

Mas dois anos, mesmo que passem a voar, são muitos dias e, enquanto as variantes do vírus nos prendiam a atenção, cresciam novas ameaças a leste. Não quisemos ver até nos entrar pela televisão em imagens de destroços e corpos, de gente a fugir. As ondas de choque chegam pelos preços, discutimos a inflação, mas eu penso muitas vezes nos que foram apanhados pela guerra na Ucrânia. Sei que, embora nos façam acreditar no contrário, as pessoas não são assim tão diferentes umas das outras. Quantos como eu, na Ucrânia, planeavam as férias, faziam contas e telefonavam aos irmãos para dividir responsabilidades, quantos tinham um tio ou avô velho a precisar de cuidados?

Eu posso assinalar o fim da pandemia, posso sentar-me na esplanada e apreciar a companhia do meu irmão para falar de livros e filmes e partilhar as memórias que mantêm a infância viva e tudo o que dela fez parte. E isso não é o mesmo que ganhar os 124 milhões do euromilhões, mas é daquele tipo de sorte que o meu pai costumava dizer que valia mais que dinheiro.