Crónicas

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Apesar dos preços, das guerras, viviam-se tempos de esperança. Até eu, lá em cima no Laranjal, acabada de chegar da universidade, partilhava o espírito da época, essa confiança no futuro

Os preços, dizem nas notícias, não subiam tanto de 1994, um ano que a mim me parece de outra vida. O Pedro Abrunhosa e os Bandemónio faziam sucesso na rádio num país a celebrar os 20 anos da revolução. Houve protestos em Lisboa por causa das portagens na ponte 25 de Abril e eu lembro-me de ler um anúncio no jornal a promover a chegada do bip à Madeira. Não sei se alguém ainda tem ideia do que era, daquele aparelho que se usava à cintura e para onde se enviavam mensagens, mas só as muito urgentes e todas via telefonista. Ou melhor que alguns usavam, a maioria de nós continuava a ter um telefone em casa, em cima de uma mesinha, ao lado do cadernos dos contactos, da esferográfica e do bloco de notas para apontar os recados.

Todas as noites os noticiários na televisão mostravam uma Sarajevo esventrada pelas bombas e pela guerra civil entre sérvios, croatas e muçulmanos. E de África, no mesmo ano da vitória de Mandela nas eleições sul-africanas, as imagens do genocídio tutsi surpreenderam o mundo. 1994 não tem apenas semelhanças na inflação, foi também um ano sangrento, com uma guerra brutal na Europa, com refugiados, mortos, prédios calcinados e esburacados. Lembro-me dos comentários, do que se dizia e como parecia impossível uma luta étnica entre europeus, era absurdo, só acontecia lá longe, em países como o Ruanda. E, apesar de ser absurdo, estava acontecer, dava na televisão, tinha imagens e o que não se sabia, o que era ainda mais atroz.

Apesar dos preços, das guerras, viviam-se tempos de esperança. Até eu, lá em cima no Laranjal, acabada de chegar da universidade, partilhava o espírito da época, essa confiança no futuro. E digo até eu, pois 1994 foi o ano em que estive doente, em que passei meses a fazer quimioterapia. Talvez por isso tenha tão presente tudo. As notícias na televisão, os filmes e os livros que li, a noção de que ou havia esperança ou seria pior, mais negro, mais difícil. Lembro-me de ir ao Cine D. João ver o ‘O Piano’ e fazer listas de livros para a minha mãe os ir comprar como se isso fosse parte do tratamento, não podia desistir, abandonar o que gostava. Se o fizesse capitulava e dava-me mais medo render-me do que lutar.

E não era difícil lutar. Também me lembro disso, de como fui à guerra com o aconchego de casa, com os gestos e a ternura, de como me esconderam as lágrimas e se fizeram mais fortes do que queriam ser. De cada regresso do hospital, com o estômago virado, havia o chá e a palavra certa, era ter paciência e, num par de meses, estava tudo esquecido. A doença, os efeitos dos tratamentos, o cabelo curto e a cair, tudo se resumiria, depois, a uma memória má e antiga. A minha mãe prometeu-me esse futuro risonho por várias vezes, sobretudo quando me dava o braço na volta da casa das minhas tias.

Eu acreditei na segunda oportunidade e tive-a antes de 1994 terminar. E ainda hoje, quando penso no melhor e no pior da minha história, sei que esse é o ano. A doença levou-me a inocência, trouxe-me sofrimento, abalou a minha família, obrigou-me a mudar; sobreviver trouxe-me a gratidão, o sentido do momento, de como é efémero o instante que passa e como é importante guardá-lo e de como há apenas um lugar onde pode permanecer para sempre: na memória.