Crónicas

Sim, onde é que Ele está?

A morte dos inocentes e o sofrimento sem explicação, sempre foram uma das faces mais revoltantes do mal, e daí a universal pergunta: onde está Deus?

Quando, no fim da Guerra, Auschwitz escancarou todo o seu horror de cemitério de 1 milhão de mortos, a pergunta tornou-se mais recorrente: onde está Deus?

A pergunta ressoou de novo em plena pandemia com o alastrar da mortandade, as valas comuns ressurgindo do fundo macabro de uma civilização aparentemente derrotada pela natureza, e de novo a crua interrogação: onde está Deus?

Atordoados ainda pelo aparente silêncio dos céus, eis que a impertinente pergunta vem causticar outra vez a boa consciência ocidental: vendo, semana após semana, o inenarrável sofrimento das cidades massacradas da Ucrânia, crianças e famílias destroçadas pelo triunfo da malvadez e da violência — onde está Deus?

Hoje, Sexta-feira Santa, quando todo o mundo cristão contempla o Inocente crucificado e ouve de novo, tão audível no imenso escândalo do sofrimento absurdo, o Seu grito “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”, a resposta só pode ser a de sempre: Deus estava e está nos que foram queimados em Auschwitz, nos que morreram sem socorro na pandemia, nas crianças e civis assassinados na guerra bárbara da Ucrânia!

O mal continua a ser o mistério que sempre foi, é certo, mas a Cruz pode ser o princípio da resposta para a compreensão de um sentido possível para a existência em busca de salvação: a Cruz é, ela mesma, a trágica expressão do mal — concreto, e não apenas metafísico — que sempre emerge na história, clamando ao universo a radical finitude humana. Lembra-te que és pó, ouvem os cristãos no início da Quaresma; és finito, a vida é puro dom, e não tens sobre ela qualquer poder — a morte está à tua espera! Mas, a lição da Cruz que os cristãos meditam neste dia é que a morte não teve e não tem a última palavra: a vida “para os outros” e em favor dos mais pequenos, na pura entrega ao amor do Pai e contra a violência sacrificial que levou à crucificação do Homem de Nazaré — Paixão de Cristo, Paixão do Mundo: a Cruz é o “terminus” da Encarnação, enquanto assumir divino de uma vida real feita carne —, eis o gesto exemplar que desfataliza a existência e abre na história um rasgão de esperança. Afinal, o mistério da morte e da ressurreição de Jesus reassume, ontem e hoje, toda a fealdade e absurdo contidos no mistério do mal, mas superados no perdão e na confiança num Amor maior que a morte. Ressurreição, é percebermos ainda hoje que a “causa” de Jesus continua! Por isso, confrontado com a interrogação do pós-Guerra — será ainda possível falar de Deus? —, Moltmann, o grande teólogo da esperança, inverte a pergunta: “Como se pode não falar de Deus depois de Auschwvitz?”

A Cruz será sempre um “escândalo” para os gentios de todas as épocas. Mas ela refaz dramaticamente o nosso olhar: assumindo a verdade do sofrimento e da finitude, redescobrimos a possibilidade do perdão e da fraternidade. É que a experiência do mal também faz surgir a compaixão, que põe fim à espiral de violência. É a Cruz que estilhaça as lógicas “vitimárias”, escrevia Tolentino Mendonça na sua crónica da semana passada: “As questões que a Semana Santa expõe não são, por isso, minoritários e intrincados assuntos religiosos que só aos cristãos dizem respeito. São um debate necessário sobre o significado do humano e sobre aquilo que nos salva”.