Rapazes de zinco, rapazes de lata
Em 1991, a jornalista russa Zvetlana Alexeivich publicou um livro intitulado “Rapazes de Zinco”, uma coletânea de textos sobre a participação das Forças Armadas Soviéticas na guerra do Afeganistão. A obra teria passado despercebida, se a Autora não tivesse sido laureada com o Prémio Nobel de Literatura em 2015, com outra coletânea de textos, “O Fim do Homem Soviético”. Na altura, houve quem reclamasse por o prémio ter sido dado a e uma jornalista, e não uma escritora de raiz.
Algo semelhante se passou com outro escritor russo, Alexandre Solzhenitsin. Em 1962, teve o atrevimento de publicar “Um dia na vida de Ivan Denisovich”, sobre a experiência de um humilde soldado, acusado de se ter deixado aprisionar pelos alemães, e preso num campo soviético de prisioneiros políticos. O livro passou quase despercebido, mas em 1968 publicou o “Pavilhão de Cancerosos”, já com maior impacto, vindo a receber o Prémio Nobel em 1970. A sua obra mais conhecida foi o “Arquipélago Gulag”, publicado primeiro em França de 1973, o que lhe valeu a perda da cidadania soviética.
Nos “Rapazes de Zinco” Zvetlana Alexeivich narra a história dos corpos dos soldados soviéticos repatriados em caixões de zinco, que não podiam ser abertos, declaradamente por razões sanitárias, na realidade pelo estado em que ficavam, ou mesmo pela ausência de corpos, por impossibilidade de recuperação; dizia-se que alguns tinham só pedras. Drama para as mães, que, segundo a tradição russa, queriam despedir-se dos seus filhos, estivessem como estivessem.
Voltamos assim à questão do tratamento dos mortos em combate. Nos chamados conflitos de baixa intensidade, a solução e é simples. Durante a Guerra Colonial, foi possível recuperar a quase totalidade de copos. De início, eram sepultados nos cemitérios locais (alguns datando da I Guerra Mundial), podendo as famílias proceder à transladação para a então Metrópole, pagando os custos. Só a partir de 1968 se passou a proceder à transladação por conta do Estado.
Mas quando se trata de conflitos mais intensos, o problema toma outra dimensão. Até ao século XIX, os mortos erem uma questão de logística e saúde pública. Assim, o comum dos militares era enterrado em valas comuns (ou lançado ao mar, na Marinha), escapando apenas alguns oficiais, transladados para a Mãe Pátria ou para cemitérios locais, como pode ver-se no cemitério militar inglês existente num dos baluartes da Praça de Elvas, recolhidos após a conquista de Badajoz, em 1812.
O expoente máximo da carnificina deu-se durante a I Guerra Mundial, na chamada Batalha de Verdun, onde durante meses, franceses e e alemães disputaram o terreno palmo a palmo, em que a intenção do comandante do exército alemão, general Erich von Falkenheim, era “sangrar os franceses até à morte”, mais do que conquistar terreno. Assim pereceram cerca de milhão e meio de militares de ambos os lados, de general a soldado raso.
Além dos vários cemitérios criados no local, foi decidido construir o Ossuário de Duoaumont, perto do forte do mesmo nome, onde foram recolhidos os restos não identificados de cerca de 130.000 franceses e alemães.
As guerras travadas na Europa durante o século XX (e agora XXI) deixaram diversos países pontuados de cemitérios militares. É a d forma de homenagear aqueles que caíram pelas suas Pátrias, irmanados na irracionalidade das guerras.
Mais recentemente, temos as imagens dos sacos verdes onde eram transportados os militares americanos, de regresso aos EUA, ou, ainda mais recentemente, os sacos de plástico em que são lançados para a vala comum os civis mortos na Ucrânia.
Li há dias um artigo em que era dito que as tropas russas na Ucrânia se tinham feito acompanhar por crematórios de campanha. Num país em que a cremação é a norma, tem toda a lógica: é um regresso à abordagem logística das baixas em combate.
Deste modo, os “rapazes” terão uma hipótese de regressar a casa. Pelo menos os que forem recuperados. Cremados e embalados em caixas herméticas, podem se remetidos às famílias, sem ocupar muito espaço.
E, em vez de “Rapazes de Zinco”, teremos “Rapazes de Lata”.