Fukuyama e o Reinício da História
Em 1989, o cientista político e economista Francis Fukuyama preconizava o “Fim da História”, acompanhando a decadência da União Soviética, a sua abertura e o fim do mundo bipolar. Emergiria um mundo unipolar onde o modelo ocidental surgiria como pináculo da evolução das sociedades, a expansão dos liberalismo económico e dos valores democráticos iriam naturalmente inundar o mundo e o grande perigo que enfrentaríamos no futuro seria o aborrecimento.
Mas tal realidade não se mostra facilmente franchisável, pois a aplicação do modelo liberal económico não traz automaticamente a democracia e a igualdade de oportunidades. O sucesso do modelo social e económico do ocidente advém acima de tudo de valores que, indubitavelmente, são o melhor que a humanidade já produziu. Há uma História de milénios, dos gregos ao iluminismo, de que nos devemos orgulhar, e que são a substância, o imaterial do que somos hoje. São os valores que devem orientar eticamente os modelos económicos e não o contrário. Se nos esquecermos da dimensão social que deve sustentar o (melhor possível) liberalismo económico, orientado para o bem comum, e tratarmos o mundo como mero supermercado, a cura tornar-se-á a nossa doença.
Os sintomas já surgiram e foram há muito anunciados, caso dos fenómenos populistas, da armadilha de Tucídides que deriva do agigantamento da China, que aproveitou a oportunidade da abertura económica ao ocidente para fortalecer a sua autocracia, em vez do fantasiado conto de fadas da transformação em democracia, liberdade, direitos humanos e igualdade de oportunidades, e a liberalização económica selvagem da Rússia pós-URSS, que fez surgir Putin e recrudescer o nacionalismo russo. Em 30 anos ajudámos a tornar o mundo perigosamente multipolar, caímos na armadilha da nossa própria falácia.
Tenho a honesta esperança de que o trágico conflito que ocorre hoje às portas da UE tenha o condão de nos fazer acordar do aborrecimento que Fukuyama premonizou, do aburguesamento ocidental à sombra do sucesso material que alcançámos.
A movimentação de Putin talvez contasse com a desagregação do Ocidente, com a instabilidade dos seus problemas e de uma ressaca pós-pandémica. Talvez fosse mais confortável para todos que Zelensky apanhasse a boleia americana, a resistência desmoronasse e, com mais ou menos sanções, tal como em 2008 na Geórgia e em 2014 na Ucrânia, as coisas mudassem para ficar tudo na mesma, e pudéssemos continuar na nossa bolha por mais uns instantes da História.
Mas os ucranianos estão a obrigar-nos a olhar-nos ao espelho, a demonstrar a importância de acreditar em algo, da solidariedade, das raízes e de uma identidade comum, a não sermos indiferentes, a sacrificarmo-nos por algo maior que nós próprios.
Independentemente de como esta guerra irá acabar, fica a certeza de que o ocidente apenas poderá prevalecer se formos capazes de olhar para dentro de nós e, apesar das nossas imperfeições, orgulharmo-nos do que fomos e do que nos tornámos, mobilizando o que de melhor construímos em comum. Após décadas de paz na Europa, é a altura de voltarmos a demonstrar que essa é a nossa maior força.