Crónicas

O bom, o mau e os fofinhos

Da cabeceira da longa mesa branca onde reúne com outros chefes de Estado e com os seus ministros, Putin parece um homem alienado

Corria o ano de 2015. Passos Coelho ganhou as eleições e Costa preparava-se para virar o resultado. Então, perante o dealbar da geringonça, Cavaco Silva fez depender um governo do PS da permanência de Portugal na NATO e no Euro. À esquerda, a indignação foi transversal. Por momentos roçou o gozo. É certo que PCP e Bloco eram a favor da saída da NATO, mas isso nunca iria acontecer. Eram posições ideológicas, de mero princípio. Bem vistas coisas, a NATO até era uma despesa inútil. Em 2022, com Putin a bater com estrondo à nossa porta, alguém continua a achar que Cavaco não tinha razão?

O bom: A Ucrânia

Há crónicas que nunca pensámos escrever. Esta é uma delas. A guerra, que se fez anunciar pelo grito das sirenes de alarme, prometia ser rápida. Absolutamente avassaladora. A Rússia gasta no setor da defesa 10 vezes mais do que a Ucrânia. Esse desequilíbrio financeiro garante superioridade russa no mar, na terra e no ar face ao pequeno exército ucraniano. Até nas lideranças políticas, a Rússia parecia ter vantagem. De um lado Putin, presidente há 22 anos, antigo primeiro-ministro e chefe dos serviços secretos, do outro Zelensky, cuja experiência governativa reduzia-se à encarnação do papel de presidente da Ucrânia numa comédia. Nas primeiras horas após a invasão, houve quem previsse a queda imediata de Kyiv. Por arrasto viria o resto do país. Até que as horas passaram a dias, os dias somaram-se numa semana e a Ucrânia não caiu. Haverá razões militares e de logística que explicam o falhanço russo, mas é impossível ignorar a coragem da resistência ucraniana. A bravura dos militares de profissão e, principalmente, dos militares de ocasião. A ousadia de quem, perante a morte anunciada, não arredou pé na defesa do que resta de uma nação. Essa valentia que nos estremece diariamente mobiliza muito além das fronteiras da Ucrânia. Foi a coragem ucraniana que precipitou uma mudança profunda na política alemã, que acordou a União Europeia adormecida e que despertou o mundo para o paradoxo de continuar a fazer negócio com um regime como o de Putin. A Ucrânia não faz, ainda, parte da União Europeia, mas é lá que se luta pela liberdade. A nossa e a dos ucranianos. Essa é uma guerra que Putin já perdeu.

O mau: Vladimir Putin

Da cabeceira da longa mesa branca onde reúne com outros chefes de Estado e com os seus ministros, Putin parece um homem alienado. Só esse estado mental explica a decisão de invadir um país democrático, soberano e independente sem qualquer agressão prévia. Só quem perdeu a razão é capaz de ordenar bombardeamentos indiscriminados contra áreas residenciais, escolas e hospitais como Putin continua a fazer na Ucrânia. O último que o fez foi Hitler. Mas a barbárie que Putin escolheu, e que diariamente impõe aos ucranianos, promete virar-se contra o mandante. Na Europa, a Suécia e a Finlândia ponderam a adesão à NATO, a União Europeia admite a possibilidade de entrada da Ucrânia e a dependência energética da Rússia está posta em causa. A Turquia fechou o Bósforo aos barcos russos. A neutral Suíça juntou-se às sanções impostas à economia russa. Até a China, provavelmente preocupada com Taiwan, reuniu com responsáveis ucranianos e exigiu o fim do conflito. A aposta de Putin, na neutralização da Ucrânia e na divisão do Ocidente, saiu-lhe totalmente furada. A Ucrânia aproximou-se da União Europeia, o Ocidente uniu-se e a Rússia isolou-se. E, ainda assim, Putin insiste. Reforça os ataques, arrasa cidades inteiras e aprofunda o desprezo pelas vidas, russas e ucranianas, que ceifa. Putin não é presidente, é um mísero terrorista.

Os fofinhos: PCP e Bloco de Esquerda

De repente, Portugal apercebeu-se do ridículo partidário à esquerda do PS. Em 2022, há partidos portugueses, na Assembleia da República, que fantasiam com o regresso do comunismo internacional, têm pesadelos com o imperialismo americano e sonhos molhados com um sistema económico que a história provou, por mais do que uma vez, não funcionar. A extrema-esquerda fofinha dos direitos dos trabalhadores e da igualdade de género, mostrou, à conta da Ucrânia, a sua moralidade defunta. O PCP, jurássico na ideologia e teimoso nas convicções, é o melhor aluno de Putin. Alinha na fantasia da nazificação da Ucrânia, nunca se refere à invasão como uma guerra, prefere sempre a “operação militar”, e aponta à NATO, aos Estados Unidos e à União Europeia a responsabilidade pelo conflito. O Bloco de Esquerda, invertebrado na ideologia e oportunista na opinião, começou a acusar Zelensky de ser um golpista de extrema-direita para depois ziguezaguear, em menos de uma semana, até uma manifestação de solidariedade com o povo ucraniano. É óbvio que nenhum partido é a favor do conflito. Não é esse o argumento. O problema é que para a extrema-esquerda portuguesa é preciso ouvir as razões da invasão. A aproximação da NATO à fronteira da Rússia, a entrada da Ucrânia na União Europeia, o fim da neutralidade ucraniana. Só lhes falta dizer que a Ucrânia pediu para ser invadida. Isso significa que, para o Bloco e PCP, a Ucrânia tem a sua soberania limitada à vontade de Moscovo. Os ucranianos não podem decidir o seu próprio destino, seja na NATO ou na União Europeia. Essa é a mesma lógica de Putin - a Ucrânia não é um país, é uma extensão da Rússia. Nesta guerra, não há mentira maior do que essa. É inaceitável que dois partidos portugueses participem num discurso que se diz pacífico, mas que contribui para a revisão de séculos de história ucraniana. PCP e Bloco dizem-se do povo mas nunca deixaram de ser de Moscovo.