Retrato dos ‘Vizinhos’ Quando Censores
Publicou o Diário de Notícias na passada quarta-feira, dia 16 de Março de 2022, um artigo intitulado Dois vizinhos querem calar os sinos da Igreja do Carmo. Antes de breve comentário ao seu conteúdo, título incluído, convém relembrar alguns factos.
Não é a primeira vez que o jornal destaca o facto de haver quem de longa data se queixe do barulho produzido pelas actividades eclesiais. Ruído da igreja do Carmo alvo de queixa, peça que viu a luz a 9 de Agosto de 2020, é disso exemplo e começava assim: «Há muito que um grupo de paroquianos do Carmo, em Câmara de Lobos, diz viver um autêntico martírio com o ruído que sai da igreja.» Repare-se só por curiosidade que é usado o termo grupo, o que razoavelmente faz supor um número superior a dois. A notícia dá conta de uma queixa apresentada no ano anterior à Câmara Municipal e da promessa desta “preparar o agendamento de uma vistoria para a medição acústica da actividade sonora da Igreja”. Refere também a boa vontade do pároco, que teria diminuído para metade as badaladas, “justamente por concordar que o som estava acima do razoável”. Ou seja, trocando por miúdos e admitindo-lhe o dom da coerência, a altura do som continuava “acima do razoável” na opinião do próprio pároco, pois só o tempo de emissão fora reduzido, não a intensidade. De salientar ainda que sob a reprodução duma fotografia com a igreja em primeiro plano se podia ler a seguinte legenda: Município pede bom senso aos paroquianos e à Igreja.
Verdade que ninguém pediu bom senso aos jornalistas. Nem a mim, que não sou paroquiano!
E assim, passado um ano e meio de silêncio, pum!, estala disparada à queima-roupa por autor diverso a chocante nova: dois vizinhos querem calar os sinos! Quase temos vontade de nos benzermos, crentes ou não; dois – apenas dois! – dois arrojados censores pretendem calar o ancestral toque! Mas como?! E porquê?! E para quê?! Lançamo-nos à leitura, uma vez que o cabeçalho só nos informa da destrutiva intenção.
Surpresa! Forçados a admirar a omnisciência do autor, que aparentemente não julgou necessário ouvir os tais vizinhos para lhes atribuir intenções, ficamos sobretudo a perceber o que queriam. Queriam que os responsáveis da paróquia respeitassem o acordo assinado entre as duas partes no âmbito de uma providência cautelar. Queriam que os responsáveis da paróquia cumprissem a execução da sentença, depois de uma peritagem aceite e provavelmente custeada por ambos ter concluído que «o ruído ambiente medido no período diurno é superior aos limites estabelecidos no Regulamento Geral do Ruído». Queriam ao fim e ao cabo que o som que continua “acima do razoável” passasse tão só a “razoável”. Queriam!...
Em jeito de apoteose final, somos ainda brindados com a informação de que o Diário passeou pela zona circundante da igreja do Carmo, estabelecendo contactos com vários moradores e constatando que «a maioria não tem qualquer motivo de queixa dos sinos». Vale a pena assinalar que, se no seu passeio o Diário não encontrou quem se queixe, tal não quer dizer que não haja quem se queixe?
Vou-me deixar de meias-tintas: em matéria de ‘proibir’ ou ‘mandar calar’, quem tem um historial deveras relevante, para não dizer tenebroso, é a igreja como instituição milenar. Incluindo, já ninguém o ignora, árduos esforços para calar denúncias de práticas dos seus agentes arrepiantemente muitíssimo mais graves do que tocar sinos…
Aqui, do que se trata afinal não é de querer calar, e sim de simples cidadãos de um estado laico de direito em demanda de uma decisão judicial sobre algo em que se sentem lesados e enganados. É disso que se trata. E tratando-se disso, era isso que devia ter sido realçado.
A. Andrade Almeida