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A arte: que nacionalidade?

As sanções, restrições e exclusões continuam a acumular. A corrida da Fórmula 1, as competições da UEFA e FIFA, a Bienal de Veneza, as estreias dos filmes de Warner Bros, Disney e Sony, o Festival de Cannes, os Prémios do Cinema Europeu, o Festival Eurovisão da Canção – eis apenas alguns exemplos da tomada de posição das instituições ocidentais perante a invasão da Ucrânia, seja isso por não permitir a participação ou por não permitir a divulgação. Essa tendência continua também a manifestar-se no mundo da música. Um dos atualmente mais prestigiados maestros, Valery Gergiev, foi removido da sua posição como chefe da Filarmonia de Munique, por ser um apoiante proeminente de Putin e por se ter recusado a denunciar a invasão. Foi também dispensado da Orquestra Filarmónica de Roterdão, em que era maestro honorário. As suas atuações em Carnegie Hall e com a Filarmónica de Viena foram canceladas. A diva operática, a soprano Anna Netrebko, que também evitou criticar o governo russo, viu as suas atuações na Ópera Estatal de Baviera e Ópera de Zurique canceladas. As suas atuações agendadas na Ópera Metropolitana de Nova Iorque não devem acontecer, pois a instituição anunciou que “os artistas e instituições que apoiam Putin ou que são por ele apoiados já não vão ser contratados”. Na semana antepassada, o famoso pianista russo Boris Berezovsky causou furor ao declarar que em Kiev devia ser cortada a luz, para aumentar a pressão sobre Ucrânia. Na semana passada a agência que o representava globalmente já rescindiu o seu contrato.

No entanto, dentro da Rússia há exemplos que demonstram a resistência moral e ética da comunidade artística russa. A primeira-bailarina do Teatro Bolshoi em Moscovo, Olga Smirnova, demitiu-se, em sinal de protesto, e vai continuar a sua carreira em Amesterdão. O pianista nascido na Rússia e ativista político, Igor Levit, declarou que ser músico não absolve de ser cidadão e de se responsabilizar. O rapper russo Oxxxymiron cancelou a sua digressão pela Rússia e começou a organizar concertos de beneficência no estrangeiro, conhecidos como “Russos contra a guerra”.

Há também casos como o do maestro russo Tugan Sokhiev, que, por ser “forçado a encarar a opção impossível de escolha entre os meus amados músicos russos e amados músicos franceses”, acabou por se demitir, tanto do Teatro Bolshoi como da orquestra de Toulouse. Considerou que ele e os colegas foram vítimas da “cultura de cancelamento” por serem utilizados, embora intrinsecamente embaixadores da paz, para dividir e ostracizar em vez de unir.

O grande bailarino soviético (nascido na Letónia e emigrado em 1974) Mikhail Baryshnikov opinou que não é justo colocar o peso das decisões políticas dum país nas costas dos artistas ou desportistas que talvez tenham famílias vulneráveis no seu país de origem. Associou-se a campanha “True Russia”, formada pelos artistas que criticam o Kremlin e pretendem promover o entendimento da cultura russa e angariar ajuda para os refugiados. Na sua declaração lê-se que também aqueles cuja língua materna é russo e que pertencem ao mundo cultural russo sentem as consequências deste choque e que a própria palavra “russo” se tornou tóxica.

O dilema entre a aplicação de medidas taxativas e a ponderação criteriosa “caso a caso” fez-se sentir mesmo a nível de jovens artistas e músicos que pretendem participar nos concursos internacionais. A WFIMC (Federação Mundial dos Concursos Internacionais de Música) emitiu um apelo alertando para o isolamento de artistas sem diferenciação entre aqueles que representam a ideologia do seu governo e os que se arriscam e manifestam a sua oposição. Insiste nesse apelo que nenhum participante pode automaticamente ser declarado o representante duma ideologia apenas devido à sua nacionalidade. Termina recomendando que os concursos não discriminem contra os jovens artistas que precisam de todo o apoio que lhes possa ser estendido.

Foi então uma surpresa quando dois dos mais conhecidos concursos internacionais de piano, o de Dublim (Irlanda) e o de Honens (Canadá), indo diretamente contra estas recomendações, não permitiram a participação dos candidatos russos já selecionados. Levantou-se muita poeira sobre estas decisões e vários jovens músicos russos protestaram sobre a decisão, indicando que ninguém sequer os tinha questionado sobre a sua posição moral e convicções políticas pessoais. Em contraste, um dos mais prestigiados concursos, “Van Cliburn”, nos EUA, declarou que não considera os pianistas russos representantes do seu governo e continua aberto para a sua participação. O concurso de Dublim, depois dum silêncio prolongado, sempre veio a publicar uma “justificação”, dizendo que, embora reconheça que os individuais talvez não espelhem ou apoiem as ações do governo, tendo em conta as ações russas, “não conseguem incluir [nove] candidatos russos”. Já o concurso de Honens, passada uma semana, inverteu o rumo e, explicando que, conforme os comentários recebidos pela comunidade artística global, “essa decisão teria um impacto negativo naqueles que não tinham um papel nem apoiaram as ações do governo russo”, acabou por readmitir os jovens pianistas russos.

Para finalizar, os estudiosos do mecanismo de boicote enquanto agente de mudança política alertam que, embora o mesmo possa exercer uma grande pressão psicológica, uma aplicação generalizada pode bem prejudicar os artistas opostos ao regime do seu próprio país.