Uma (possível) crónica de guerra
Nem tudo é visível nos directos a que nos fomos habituando em tempos de crise tal como a que vivemos agora.
O directo faz a notícia do que conseguimos ver.
O directo traz a emoção da imagem que toca dentro de cada um de nós, mas quando passa leva com ele a emoção que tinha trazido à espera de um outro directo, de uma outra emoção vivida em tempo real ou em tempo quase real.
O instante não transmite o facto que levou à imagem captada pelo directo.
Uma guerra, qualquer guerra, leva a que as pessoas tenham de tomar opções inimagináveis: fugir, ficar, o que levar, quem fica, que parte, o que se deixa para trás, quem se deixa para trás, mesmo que deixar para trás signifique deixar partir…
Numa fria manhã de guerra, uma mãe, com o carinho que só as mães têm, escolhe o que vestir ao filho.
Olha o que há no armário, que camisa, que camisola, que casaco, liso, às riscas, com capucho para cobrir o gorro, que faz frio, as calças, quentes, e os sapatos, abraçando o seu menino, com um sorriso externo e uma angústia interna que não quer passar! Que extras, incluindo dois ou três brinquedos, a pôr no saco, não muito pesado porque o caminho pode ser longo e a criança pode não aguentar o peso, enquanto vai falando suavemente, explicando o que o menino tem de fazer, dizendo que escreveu umas orientações na sua mão para que os adultos possam saber ao que o menino vai.
E explica, já não sorrindo mas chorando lágrimas já de saudade de um filho que não sabe quando irá rever, que a mãe quer que o menino seja bem comportado, porque tem de ser, que irá ter com ele logo que possa, que ela mãe, tem de ficar, porque o pai foi para a guerra e ela tem de ficar a cuidar da sua mãe, a avó, que não se pode deslocar, está doente e precisa que alguém a ajude.
E fica a olhar o seu menino partir, deixando-o partir, para que a sua própria mãe não fique para trás, chorando, tal como o menino que segue o caminho dos mais crescidos, com o seu casaco às riscas e um brinquedo no saco, chorando baixinho um “quero a minha Mãe”.
Não consigo imaginar a coragem do sofrimento necessário para as opções inimagináveis que uma guerra pode trazer.
E nós, à distância, só podemos chorar com o menino a saudade da sua mãe.
E imaginar a lágrima persistente nos olhos de uma mãe que deixou partir um filho para poder cuidar da sua mãe!
E eu chorei com ela!
O mundo emocionou-se quando, há pouco mais de um mês, o pequeno Rayan caíu num poço numa pobre e longínqua aldeia marroquina, onde não podia ter caído, onde não devia ter caído.
Entretanto o mundo evoluiu e deixou de se emocionar com a notícia do pequeno Rayan caído no poço, e passou a seguir, centímetro a centímetro, metro a metro, todos os avanços e recuos de uma fuga desesperada por quem quer somente escapar de uma guerra sem propósito, sempre acompanhados pela atenção mediática que incessantemente relata o socorro que se quer imediato, mas que tarda em chegar.
Aí estão todos, homens, mulheres, crianças a tentarem fugir ao horror que não querem viver.
E o mundo emociona-se!
Tal como com o pequeno Rayan, o mundo emociona-se em directo, seguindo atentamente a fuga de um povo, impotente para conter as bombas que tudo destroem sem olhar a quem!
O mundo tem obrigação de se emocionar sempre que morre um menino num poço, numa praia ou num hospital, mesmo que não seja notícia de primeira página.
O mundo tem obrigação de se emocionar quando na fuga dos adultos quem levam meninos com eles, vai um menino sozinho, de gorro por baixo do capucho do casaco às riscas, mostrando os olhos tristes e o beicinho de choro, de um choro contido e sentido, com um pequeno saco com alguns pertences (algum brinquedo, quem sabe…) andando bem devagar olhando para as botas que protegem do frio que se faz sentir, chorando baixinho com saudades da Mãe que escreveu alguns recados na palma da sua mão, chorando a olhar para a câmara que o filma, querendo dizer “quero a minha Mãe”, continuando o seu caminho a olhar para as botas sem saber o seu futuro, sempre chorando baixinho…
E eu chorei com ele!
Chorei com ele, chorei por ele e pela sua mãe, e pelas opções inimagináveis que foram necessárias tomar!