A Guerra Mundo

Um mês de guerra criou uma nova normalidade na capital

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FOTO NUNO VEIGA/LUSA

No exato dia em que se assinala um mês da invasão russa à Ucrânia, os habitantes da capital já se habituaram aos barulhos da artilharia ou ao cheiro a pólvora e criaram novas rotinas para "manter a sanidade mental".

"Do ponto de vista pessoal tenho medo de sair. Isto não é uma vida normal, mas temos de encontrar uma nova normalidade" para "não nos tornarmos malucos", diz Svetlana, 53 anos, à Agência Lusa em Kiev, junto do centro comercial Retroville, atingido por um míssil no início da semana.

O seu marido, Rizo, que a acompanhava no passeio, recorda os primeiros momentos da invasão russa da cidade, com bombardeamentos e a conquista de várias localidades em redor da capital.

"Os primeiros três dias foram aterrorizantes, estávamos cheios de medo, mas depois pensámos que era normal ouvir as bombas e voltámos a fazer coisas", explica Rizo, 57 anos. A sua mulher insiste que a sua vida mudou: "Todos os dias estou à espera de uma coisa má".

O casal criou novos hábitos: não sai de casa depois das 17:00 e à hora do recolher (20:00) muda-se para a cave do prédio, juntamente com os vizinhos, onde dormem até ao dia seguinte.

"Depois, levantamo-nos, vamos tomar banho e continuar as nossas vidas", explica Svetlana que trabalha num hospital, um emprego a que só faltou nos primeiros dois dias da guerra.

Na cidade, principalmente nas zonas leste e norte são audíveis os disparos de artilharia e o cheiro a pólvora é uma constante. Mas, mesmo quando as sirenes ecoam, não se vê ninguém a fugir para os abrigos.

Os controlos em vários pontos da cidade tornaram-se normais para quem circula de carro e os condutores parecem não estar afetados pelas longas filas, acentuadas pelos cortes na circulação em três das seis pontes que cruzam o rio Dniepre.

Nos últimos três dias, o exército ucraniano terá feito alguns avanços na zona de Irpin, recuperando vários quilómetros às tropas russas. Da zona, no horizonte, pode ver-se sair uma grande coluna de fumo negro.

Sobre a hipótese de fugir da capital, Svetlana é taxativa. "Não vamos sair de Kiev. Sair de Kiev seria como desistir da Ucrânia".

Na Praça da Independência (Maidan), há mais barricadas e jornalistas que residentes. A poucos quilómetros de distância, em Nvyky, um casal de jovens passeia junto a uma zona de lazer. Já é tarde e não se veem crianças a brincar como de manhã, mas Petro e Hola, dois videógrafos, decidiram dar uma volta para "ver como estão as coisas".

Hoje estão sem emprego, mas dizem que nunca trabalharam tanto na vida. "Todos os dias vemos o que as unidades de defesa territorial (equipas civis militarizadas) precisam e vamos buscar: comida, roupa, materiais para as barricadas, o que for preciso", explica Petro, o mais fluente dos dois em língua inglesa.

"Acreditamos no nosso Presidente e no nosso governo. Esta é a nossa terra e faremos o que for preciso para ajudar quem nos está a defender", diz o jovem com pouco mais de 20 anos.

"Estamos a fazer o que é preciso. Tudo o que for preciso", acrescenta Hola, explicando que os habitantes de Kiev tentam, apesar de tudo, "viver o dia-a-dia" na "esperança" de que as coisas melhorem.

Mas "as coisas estão melhores, o nosso exército fez muitos avanços. Já temos menos medo", reforça Petro, que admitiu não acreditar na eficácia dos militares ucranianos no início do ataque.

"Não era só a Europa [que tinha dúvidas], nós também não acreditávamos que resistíssemos tanto. Mas os nossos militares são bons, muito bons. Antes da guerra, não acreditava que os russos nos invadissem de uma forma global, pensava só que seria lá para o leste" do país, reconhece Petro.

"Não aceitámos os acordos de Minsk (o tratado que estabelecia um cessar-fogo no leste da Ucrânia nas zonas ocupadas por milícias prórrussas) e Putin não nos perdoou", disse Petro, que recusa que exista divisões dentro da Ucrânia ou que existam muitos ucranianos que queiram pertencer à Rússia.

"Putin não tem razão. Nós não queremos ser a Bielorrússia", diz, numa referência ao país vizinho que permitiu a presença de tropas russas para a invasão da Ucrânia.

Sobre as acusações de neonazismo [argumento de Moscovo para invadir a Ucrânia], Hola e Petro riem-se. "Eu sou liberal (centro-esquerda), não sou nazi", responde Hola.

Petro concretiza: "A propaganda russa não sabe distinguir nazismo de patriotismo. Eu sou patriota, não sou nazi. Posso ser de esquerda ou de direita, não interessa, mas na Ucrânia somos patriotas, temos de ser por causa da Rússia".

E Hola tenta resumir o argumento político dos dois jovens. "Somos europeus e queremos ser da Ucrânia, apenas. Não queremos ser russos".