Operações militares na guerra seguem "campanha mediática"
A invasão da Rússia à Ucrânia revelou uma nova forma de fazer a guerra, com um enquadramento russo diferente do ocidental, e onde as operações no terreno seguem a "campanha mediática", afirmou o general Agostinho Dias da Costa.
"Estamos numa forma nova de fazer a guerra, estamos nas guerras híbridas no quadro russo, que é diferente do quadro ocidental. E efetivamente as operações no terreno seguem a campanha mediática. A campanha mediática, a campanha informacional, é que lidera as operações no terreno", disse o oficial em entrevista à Lusa.
O responsável militar, com o posto de major-general e vice-presidente do centro de estudos Eurodefense-Portugal, recordou o ataque que ocorreu na madrugada da passada segunda-feira a um grande centro comercial de Kiev para justificar a imposição de uma nova "ideologia" nos campos de batalha.
"Podemos ver que o filme apresentado [pelos russos] sobre o ataque ao centro comercial é feito por profissionais. Houve a preocupação de primeiro filmar as baterias a disparar, as viaturas militares em movimento, só à noite é que lançaram o ataque. Que vamos atacar este alvo, provar que os ucranianos estão a usar um centro comercial como base de uma bateria de lança-foguetes múltiplos, vamos filmar e fazer uma coisa espetacular para poder mudar as perceções", explicitou.
Uma ação militar que obteve grande impacto, como algumas anteriores, em particular o ataque à base militar que acolhia mercenários estrangeiros perto da fronteira com a Polónia, e "destinada a criar efeitos no mundo mediático". Desta forma, como esclareceu, "a parte militar subordina-se à manobra comunicacional. O que é novo neste conflito é que as operações militares seguem a campanha informacional".
Neste particular campo de batalha, o general considerou um "erro brutal" a proibição da divulgação dos 'media' russos oficiais no ocidente, em particular a televisão estatal Russia Today e a agência noticiosa Sputnik.
"E não me refiro ao plano dos valores que defendemos. Nós somos diferentes, o mundo da liberdade de comunicação é um dos pilares da nossa civilização... percebo qual é a lógica, mas uma coisa é perceber e outra é aceitar, concordar. A lógica é que o ocidente tem conhecimento da doutrina dos russos. Que a guerra híbrida é fundamentalmente uma guerra comunicacional. Então, a primeira ação que foi feita é de neutralizar toda a capacidade informacional do adversário".
"Faz-nos falta informação porque conseguimos triar. Os jornalistas conseguem perceber quando estão a ver uma imagem manipulada, quando estão a receber uma informação absolutamente manipulada, e os analistas militares também, nós conseguimos perceber", afirma.
Perante este panorama, o general assinala que "não conseguimos fazer chegar a nossa informação ao povo russo. Quando fechamos dois canais que toda a gente sabe que são de propaganda, a RT e a Sputnik (...) os russos retaliam, fecham a Euronews, DeutscheWelle, a BBC, e o povo russo não é informado".
"E se queremos que haja mudança na Rússia", reafirma, "se queremos influenciar as mentes e os corações dos russos, temos de lá chegar pela informação isenta, ocidental, um dos nossos pilares, dos nossos valores. Um erro estratégico enorme. E aí os russos ganharam porque nós continuamos a receber propaganda russa pelo Telegram. E eles não, fecharam na segunda-feira todo o sistema da Meta, o Facebook, Instagram".
As sucessivas declarações e informações em torno da eventual utilização de armas químicas também mereceram um comentário de Agostinho Costa, quando considerou que a introdução deste tema poderá perspetivar que a guerra se possa prolongar, e com "encenações" de parte a parte.
"Pessoalmente não dou crédito nenhum ao que os russos mostraram (...) E ninguém usa armas biológicas, nenhum exército. Porque, senão, de seguida, a arma biológica não conhece fronteiras. E a arma química não faz sentido, porque toda esta narrativa é da linha da operação comunicacional", enfatizou.
O especialista em estratégia militar argumentou que esta guerra está a ser planeada "com várias linhas de operação" - uma económica que considera já "esgotada", outra diplomática, apesar de as diligências junto do Tribunal Penal Internacional (TPI) terem registado poucos resultados até ao momento, em particular pelo facto de a Rússia, tal como os Estados Unidos, não serem signatários.
"O que está aqui em presença, embora a nós ocidentais nos custe um pouco, são questões de ordem geopolítica", ressalvou.
"Após as linhas de operação económica, diplomática, quais as que são efetivas nesta altura? São as linhas comunicacional, informacional, e a militar. É aí que tudo de centra. E este 'tirar da lâmpada' o 'génio' do 'monstro químico' enquadra-se na campanha comunicacional, da mesma forma que Putin colocou há três semanas em alerta as armas nucleares. Não é esse o patamar, é para alimentar a comunicação e nos manter atentos".
Ao recorrer aos ensinamentos militares, e exprimindo-se em nome do coletivo, também acrescenta que "o emprego de munições químicas em terreno urbanizado não é eficaz".
"Não faz sentido. O que é preocupante é o sinal político ao indicar que quem está a enviar esta mensagem está a contar que esta seja uma guerra como a da Síria, uma guerra que se vai prolongar e que dentro de seis meses estaremos aqui novamente a fazer uma análise, ou dentro de um ano ou de dez anos, ou como a guerra na Síria, com mais de dez anos", adianta.
De acordo com uma avaliação comum, também admite que a Rússia "não pode perder" esta guerra, iniciada em 24 de fevereiro com a invasão à fronteiriça Ucrânia.
"É a perceção que todos temos. Saltando do nível operacional para o político, os russos não se vão sentar na mesa das negociações enquanto não tiverem Mariupol [importante porto no mar de Azov] conquistada, enquanto não tiverem o 'oblast' [província] de Donetsk todo conquistado, e enquanto não tiverem o 'oblast' de Lugansk todo conquistado, todo o Donbass. E também enquanto não consolidarem toda a zona que vai de Mykolaiv a Zaporijia, ao longo do rio Dniepre, acima da Crimeia".
O general Agostinho Costa também denunciou as tentativas de organizar um "referendo" numa região controlada pelos russos "para que fosse também uma república independente", mas excluiu qualquer interesse dos russos em controlar a cidade de Odessa, também banhada pelo mar Negro. Em paralelo, sustentou que o apoio do ocidente deve apenas privilegiar o envio de armamento solicitado, que pode ser destruído pelo exército russo, como já sucedeu.
"A saída para este conflito é política, tem de ser negociada por quem são os 'players' neste processo e quem pode decidir uma nova arquitetura de segurança na Europa que não enquadre apenas a Ucrânia, mas também a situação da Finlândia, Suécia, da Moldávia, da Geórgia", considerou.
"É muito importante, porque o 'rinoceronte' da sala não é a União Europeia, é a NATO, porque os russos não se opuseram que a Finlândia entrasse para a UE, nem a Suécia. O que não querem é a NATO, e a NATO, entenda-se, são os Estados Unidos.
"Dentro de uma semana poderemos ver, os planos mudam em função do andamento das operações... O exército ucraniano tem 209.000 homens e mulheres, está exponenciado por um povo em armas, assistimos a um conflito assimétrico, a parte ucraniana com um conflito de segunda geração, uma dimensão de quase guerrilha e convencional, e do lado russo um conflito de quarta geração, com tropas no terreno e mísseis hipersónicos", concluiu.