Acção militar da Rússia na Ucrânia é dirigida para os EUA
A ação militar da Rússia na Ucrânia é dirigida para os Estados Unidos e Putin conseguiu o objetivo de impedir uma intervenção direta da NATO, indicou em entrevista à Lusa o general Agostinho Dias da Costa.
"Os objetivos políticos não estão direcionados para a Ucrânia, mas antes para fora da Ucrânia. O grande objetivo desta ação militar que a Rússia desenvolve na Ucrânia está dirigido fundamentalmente para o seu rival estratégico, os Estados Unidos, e para a NATO, a grande aliança militar onde os Estados Unidos são predominantes", assinalou o major-general e quando se completa um mês desde o início da invasão militar da Rússia ao país vizinho.
Na perspetiva do responsável militar, com o posto de major-general e vice-presidente do centro de estudos Eurodefense-Portugal, a escalada entre as duas potências atingiu um "ponto culminante" quando a Rússia apresentou em dezembro passado uma proposta dirigida aos Estados Unidos e NATO "e que propositadamente não enviou à União Europeia" sobre uma nova arquitetura de segurança europeia.
"A discussão da Europa ficou fora a Europa, a proposta foi enviada aos Estados Unidos e à NATO. Sabemos que [o secretário-geral da NATO, Jens] Stoltenberg representa a direção política da NATO, mas a direção militar é fundamentalmente americana. E terá sido mesmo por cortesia para com a NATO, porque efetivamente a NATO é o grande óbice que os russos têm. Consideram-se alvo de um cerco pela NATO, e esse foi o primeiro objetivo", assinalou o general, que se pronunciou sempre em nome do coletivo a que pertence.
Na sequência da invasão de 24 de fevereiro, o Presidente russo Vladimir Putin conseguiu desse modo garantir o "objetivo político" da não-intervenção direta da NATO no conflito.
"No plano estratégico, Putin conseguiu até agora manter a NATO em suspenso, neutralizar a capacidade de interferência direta da NATO no território", frisou.
"O que eram eventualmente as expectativas da Ucrânia de poder contar com o apoio da NATO, ficaram goradas", assinalou, ao recordar que essa perspetiva já estava presente nos exercícios militares da Rússia junto às fronteiras ucranianas ainda em 2021.
"Putin disse que tinha 200.000 militares em exercício [na Bielorrússia] e onde também participou a Índia, que não deixa de ser um sinal interessante. A Sérvia e os países da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO), uma espécie de NATO que Putin criou na esfera da antiga União Soviética, também estiveram presentes, foi um sinal importante", precisou.
Estes exercícios militares tiveram como cenário "uma invasão da Rússia por um país nórdico, um sinal para os escandinavos, em particular os que têm vindo a ser seduzidos para entrar na NATO", adiantou, numa óbvia referência à Suécia e Finlândia.
Assim, esta "ação de demonstração" militar, nos exercícios em finais de 2021, foi o "primeiro patamar da escalada russa" com a intenção de provar através dessa manifestação de força que a NATO não interviria na Ucrânia.
"A nível político, e contrariando o que tem sido a narrativa ocidental de que a NATO está de portas abertas, vimos [o Presidente da Ucrânia, Volodymyr] Zelensky um pouco desalentado, desiludido, 'dizem que estão de portas abertas, mas não nos deixam entrar...'. O primeiro patamar da escalada russa tinha por objetivo provar, com essa demonstração, que a NATO não interviria na Ucrânia. E creio que esse objetivo está alcançado. Manter a NATO em suspenso, neutralizar a capacidade de interferência direta da NATO no território".
Numa referência ao nível operacional, à atual situação no terreno, Agostinho Costa diz ser agora possível "uma visão um pouco mais clara" sobre os objetivos da Rússia, e quando de início se perspetivou uma invasão e ocupação de todo o país, "uma operação relâmpago à semelhança da segunda guerra do Golfo", e em direção à capital Kiev
"O que vimos não foi nada disso", apontou. "Antes, que os russos têm três frentes, três eixos de invasão, um a norte em Kiev -- um grande eixo de invasão que tem um sub-eixo que vem Bielorrússia e um da Rússia direcionados para Kiev --, um a sul, da Crimeia em direção a Kherson, e uma frente a leste que procura apoderar-se do remanescente dos dois 'oblast' [província] de Lugansk, a norte, e de Donetsk a sul, [na região do Donbass] e também direcionado a sul, para Mariupol".
De acordo com esta análise operacional, os russos não parecem empenhados numa intervenção de força nas regiões da Ucrânia a ocidente do rio Dniepre [que atravessa o centro do país], incluindo a cidade de Odessa.
"Se fosse uma guerra relâmpago, a lógica seria que os russos procurassem a partir da Bielorrússia e tinham essa capacidade -- e eventualmente vindos da Crimeia junto à Transnístria que tem o flanco coberto por um território sublevado e que é uma crise provocada pelos russos para manterem a Moldávia fora do mundo ocidental -- para se direcionarem fundamentalmente a Lviv e às cidades de fronteira, e isolavam o país".
Caso concretizassem esta manobra, "o país ficava isolado porque o mar é russo, o ar é russo, a Bielorrússia pertence à união com a Rússia, mas estranhamente não o fizeram. É o que podemos depreender em termos de manobra operacional, e não mostram pressa...".
Numa referência ao anunciado cerco a Kiev, que não foi totalmente concretizado, o general Agostinho Costa considera que o "garrote" aplicado à capital ucraniana se destina a manter pressão sobre a cidade e fixar forças ucranianas nessa região, evitando que sejam enviadas em reforço de outras linhas da frente, em particular para o Donbass. Para além de a capital do país constituir o "grande objetivo político", com a persistente coação sobre o Governo de Zelensky.
"Vemos que a norte, em Kharkiv, os russos pararam, parecem fixar forças. A sul, procuraram chegar ao Dniepre. O abastecimento de água à Crimeia é feito a partir de uma barragem na zona a leste de Kherson, e foi logo um objetivo, um pouco como os montes Golã na Síria para Israel", afirmou.
O responsável pelo Eurodefense-Portugal frisou, no entanto, que segundo indicadores disponíveis também se verificou "uma subvalorização nítida", em relação ao exército ucraniano, por parte dos russos, que estão a deparar-se com particulares dificuldades na frente leste, na região do Donbass, um dos seus objetivos estratégicos.
"É nessa região que o exército ucraniano está em força, estão lá há oito anos, têm posições defensivas, é onde se encontra a nata do exército ucraniano", esclareceu. Assim, e um mês após a invasão, a única frente onde os russos atingiram os objetivos foi na frente sul que parte da Crimeia e quando, em termos operacionais, a frente norte está a ser utilizada para posicionamento de forças.
No Donbass, a região onde foram proclamadas em 2014 duas repúblicas separatistas pró-russas, que Putin reconheceu nas vésperas da invasão à Ucrânia, o desfecho dos acesos combates será decisivo, para permitir uma eventual solução negociada do conflito, ressalvou.
Agostinho Costa garantiu que os russos "não se estão a dar muito bem" no Dobnass, apesar de já controlarem a quase totalidade do oblast [província] de Lugansk, ao contrário do que sucede em Donetsk.
"Toda a zona de Dnipro até à linha da frente regista combates muito intensos, porque é uma retaguarda, as linhas de abastecimentos para Mariupol estão fechadas, mas a centralidade do ataque e da defesa está a ser decidida aí", indicou.
De acordo com as projeções que emitiu, e apesar da existência de "vários patamares", nos próximos dias as atenções deverão ser concentradas na evolução da situação em Mariupol e no 'oblast' de Donetsk, onde se concentra a elite das forças de Kiev, as suas melhores unidades.
Uma ação militar que também indica a renúncia dos russos em conquistar toda a Ucrânia, e quando assinala um "volume de baixas consideráveis de ambas as partes", mas sem fornecer crédito aos números emitidos pelas duas partes em guerra, e sem informações precisas sobre as baixas civis.
O general admite que, em caso de alastramento do conflito a outros territórios, os russos poderiam sentir na Ucrânia as dificuldades que os norte-americanos sentiram no Iraque.
"Não querem conquistar o país. Kiev não lhes interessa até porque não têm potencial de combate para conquistar Kiev. Veja-se Mariupol, uma cidade com 300.000 habitantes, Kiev é dez ou 15 vezes maior. Não têm capacidade. Os russos não têm forças para conquistar, é impossível, não é racional", assegurou.
Para o vice-presidente do Eurodefense-Portugal, a opção de prescindir de um ataque à capital da Ucrânia constitui uma decisão política, e não uma decisão militar.
"Pode acontecer-lhes como o Iraque. Porquê? Todos nos lembramos de [George W.] Bush [ex-Presidente dos EUA no porta-aviões SS Abraham Lincoln em 01 de maio de 2003], a anunciar 'the war is over', acabaram as operações militares..., mas acabou uma fase e começou outra", recordou.
"É que as operações militares têm uma fase preparatória, a fase das operações militares, quando começa a campanha aérea, até à conquista de objetivos militares e políticos como sucedeu no Iraque, mas depois começa o período da operação de estabilização", que se revelou complexa e desastrosa.
"Na operação de estabilização, os americanos foram derrotados, e os russos sabem que se ocuparem o país vão ter de fazer uma operação de estabilização e serão derrotados por outros meios. É preciso ter presente a história", concluiu.