'Palynytsya', o 'pão doce' ucraniano para detectar espiões russos
Os controlos são às centenas na Ucrânia, cada condutor tem de entregar documentos e sujeitar-se à revista pontual na 'caça' de espiões russos. Quando os guardas desconfiam, há uma palavra-passe que denuncia quem a diz, "palynytsya".
"Os russos não a conseguem dizer do mesmo modo que nós", explica um civil da brigada de defesa territorial. Quem fala russo no seu dia a dia, ou não sabe outra língua, transforma o 'y' final num 'i', mas em ucraniano deve ler-se como 'e'.
"É ridículo, eles não conseguem mesmo", insiste o guarda. A palavra "palynytsya", uma espécie de pão doce, é pedida quase como uma contrassenha que só os falantes de ucraniano, um idioma com uma sonoridade mais polaca do que russa, conseguem dizer rapidamente.
"Assim, sabemos quem é espião", sorri o civil, vestido de militar. Há um mês exato, a 24 de fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia e a sua vida mudou, como de milhares de ucranianos, convocados para as unidades de defesa territorial numa guerra que matou mais de mil civis até ao momento e que parece estar num impasse militar, com os russos à porta de grandes cidades, sem as conseguirem conquistar.
Existem muitos ucranianos russófonos que quase só falam a sua língua materna e muitos outros de origem bielorrussa. Nesses casos, os membros da defesa territorial ficam atentos a pormenores e colocam outras questões como as que a Lusa ouviu nos 'checkpoints' de acesso a Kiev.
"Para onde se dirige? Kiev? Como é que se chama a estação de metropolitano do local X?", questionaram. Curiosamente, em todas as vezes que a Lusa ouviu a pergunta, não existia qualquer estação nesse local.
Outra forma de avaliar quem possa ser apoiante da Rússia é pedir para ver o telemóvel e verificar as fotografias e as mensagens. Sempre com sorrisos e simpatia, mas com preocupação.
Em todas as localidades há pelo menos dois pontos de controlo e, nalguns casos, há quem marque o carro com uma fita autocolante de cor para evitar o segundo 'checkpoint'.
Na maioria das vezes, são civis, embora existam alguns militares envolvidos. Nas barricadas improvisadas, feitas de sacos de terra, carris ferroviários, montes de terra e paletes de madeira estão inscritos insultos ao Presidente Putin e à Rússia, em tom de desafio.
"Estamos à vossa espera"; "Corram para morrer"; "Vão morrer aqui"; "Putin és um c..."; "Vamos até Moscovo matar-te, Putin"; "Nunca mais chegam?", foram algumas das frases que podiam ser lidas nas ruas entre Jitomir e Kiev, algumas delas acompanhadas por caricaturas, cruzes de cemitério ou outras esculturas criativas.
Num dos pontos, estava um manequim branco de uma loja, com um capacete e sangue na boca a receber quem chegava. Nas estradas, barreiras forçam os carros a diminuir de velocidade mesmo em zonas onde não há 'checkpoints' e uma viagem que poderia ser feita numa hora e meia passa a demorar seis horas.
Nalguns pontos de controlo, além da bandeira ucraniana, com um azul claro e amarelo omnipresente nas paredes das casas, portas e nas fortificações, é visível a bandeira preta e vermelha, símbolo do Setor Direito, um partido ultranacionalista que integra elementos neonazis.
Na zona leste do país, entre Lviv e Jitomir, os controlos com elementos do Setor Direito eram mais evidentes, mas, à medida que as frentes de batalha ficam próximas ou perto das grandes cidades, esses símbolos rareiam.
Aos jornalistas estrangeiros no país - já foram credenciados mais de quatro mil - o governo ucraniano faz uma série de pedidos no uso do vocabulário para evitar aquilo que consideram ser propaganda russa.
Além de indicar que se trata de uma "invasão" e não de uma "operação miliar" ou de um "conflito", Kiev pede aos jornalistas estrangeiros que não usem a expressão "Guerra de Putin", recordando que há uma elevada percentagem de russos que apoiam este ataque.
"A narrativa que caracteriza a guerra como uma guerra de proximidade entre a Rússia e o Oeste nega a ação ucraniana. (...) A NATO é uma aliança de defesa coletiva de nações soberanas" e ao "focar-se na 'expansão' [da organização], os media estão a perpetuar a justificação do Kremlin para a guerra e a ignorar a voz democrática do povo ucraniano que quer viver em paz, longe da agressão russa", refere o governo de Kiev, num documento distribuído à imprensa estrangeira no país.
No seu texto para jornalistas estrangeiros, o governo ucraniano recomenda que não se use a expressão "áreas separatistas", quando existem referências a Donbass (no leste da Ucrânia, territórios russófonos alegadamente conquistados por independentistas locais com forte apoio militar de Moscovo), mas sim como "protetorados russos".
Outro erro comum, segundo o governo ucraniano, é indicar a posição da Ucrânia e a Rússia como sendo "duas perspetivas iguais", mas, para Kiev, "as posições russas estão baseadas em mentiras, propaganda e negação da existência da Ucrânia como uma nação".
"A propaganda russa não é apenas comunicação estratégica, ou outro de ponto de vista, é uma arma de guerra", avisa o governo do Presidente Zelenski.
Já nas estradas, a despedida de cada posto de controlo é quase sempre a mesma. O guarda diz "Slava Ukrayini!" ("Glória à Ucrânia") e os membros dos carros devem responder "Heroyam slava!" ("Glória aos Heróis"), uma espécie de mote desta guerra.
Quanto a "Palynytsya", a palavra não é problema para quem fala português e se esforça por imitar a sonoridade. "Vocês não falam como russos", diz um membro da brigada territorial.