O hábito errado
“É que ninguém dá por isso, mas se Luís de Camões fosse vivo, com jeito já tinha mais uma pala noutro olho com tamanha literalidade que por aí anda.”
Dos pequenos aos graúdos, são muitos aqueles que têm um particular hábito vocabular: o literalizar.
Usam-no no seu quotidiano como se nada fosse, reforçando sem controlo tudo o que de mais giro lhes sai da boca, como que salpicando drama em tudo o que são argumentos mais lingrinhas.
E perguntam-se vocês: “fazem o quê? quem? eu cá fiz nada…”
Calma… O problema aqui está no “literalmente”. É essa bendita expressão que todos surram sem saber, é o modo como esta palavra é burlada de forma tão banal na maioria dos casos.
É que ninguém dá por isso, mas se Luís de Camões fosse vivo, com jeito já tinha mais uma pala noutro olho com tamanha literalidade que por aí anda.
Quantos de nós não usamos o “literalmente” vezes e vezes sem conta para ampliar a nossa ideia numa qualquer conversa e, nem nota que o que está a dizer é sim figurado. É pura ilusão de massas, são mais que as mães.
Vigiem aqui então: o bendito “Literal” vem do latim littera, que significa “letra”. Que se formos à letra, por exemplo, ao dizermos que num jogo de futebol, o clube A foi “literalmente” cilindrado pelo Clube B, estaríamos a dizer que em certo momento da partida, entrava um rolo compressor relvado adentro e passava 11 coitados a ferro! Humm… demasiado gráfico.
Ou quando dizem que a música X de grande sucesso está a inundar “literalmente” todas as rádios do país.
Não… Não acontece. A música não tem propriedades aquosas, nem enche estúdios radiofónicos de água até ao teto.
Houve aqui uma apoderação não calculada do “literal” sobre o “figurado”, pelo menos do seu significado, a contar as vezes que o empregamos mal…
O literalmente passou a ser o advérbio bengala das hipérboles. O que de si é irónico e não parece nada literal na verdade. Enfeita bem, reforça, mas não é verdadeiro no fundo.
Não precisamos de inventar um movimento para acabar com isto, temos sim que parar e pensar antes de dizermos coisas literais, nada literais.
Portanto não façam isso à vossa vida, comam antes uma peça de fruta. Faz-vos melhor, literalmente.