Crónicas

O postal em meia folha A4

Lá dentro eu escrevia um ‘para o melhor pai do mundo’, o que quase sempre corria mal, acabava tudo riscado que, no Laranjal, até na escola se fazia poupança no material

O meu pai era um homem simples com uma história dura, daquelas que metem fome, frio e trabalho pesado, onde faltou escola e futuro. E uma infância assim marca os modos, deixa traumas e medos, coisas que, ao tempo, não se sabia que existiam. Havia miséria e o que a miséria trazia, o resto inventamos depois, mais tarde, já no conforto.

Esses medos e traumas viveram connosco e assumiram muitas formas e foram precisos anos para compreender todas as dimensões do homem com quem cresci, tão difícil, tão orgulhoso e capaz de chorar ao ler os nossos postais do Dia do Pai. Todos os anos, na escola, os professores faziam-nos dobrar meia folha A4 e pintar um coração.

Lá dentro eu escrevia um ‘para o melhor pai do mundo’, o que quase sempre corria mal, acabava tudo riscado que, no Laranjal, até na escola se fazia poupança no material. Só havia meia folha por aluno. Mais ou menos envergonhada, enfiava dentro da pasta o trabalho de desenho do Dia do Pai na esperança que o meu pai não desse pelos borrões.

E à noite, na hora de mostrar, o meu irmão fazia vista, era um talento a desenho, a subir árvores e fazer tudo com elegância. O meu vinha sempre por último, tão desajeitado como eu, mas o meu pai comovia-se e fazia um esforço para soletrar a minha letra, que nunca foi bonita. Sei que ver aquele homem grande, com as mãos de trabalho a tentar abrir o postal da escola era estranho e bom.

Não fazia comparações, não dizia que um estava melhor ou pior. Ficava só feliz e quando o meu pai concedia a si mesmo o direito de ser feliz e de se emocionar como uma criança a nossa casa ficava maior, as nossas vidas pareciam melhores e cheias de futuro. E foram precisos muitos anos para entender essa extraordinária capacidade. Sermos capazes de fazer isso, nós, os que tivemos uma vida mais ou menos privilegiada, é normal, mas o meu pai era um sobrevivente da miséria.

E a miséria tira tudo ou quase tudo. A comida, a dignidade e a poesia, esse direito de se sentar a apreciar o momento, a tarde, o voo do milhafre ou um gato a equilibrar-se em cima de um muro. O meu pai era capaz de fazer isso, de se interessar por coisas insignificantes, de me falar delas. Aliás, foi ele que me ensinou a olhar para as estrelas, a gostar de livros e de saber mais. Não porque ia dar jeito, porque era preciso para passar de ano, mas apenas por era bom ou apenas bonito.

Assim como ele sentado na banca da cozinha a soletrar a minha letra no postal do dia do Pai.