“Humilhados e Ofendidos”
Três semanas de guerra, e já sentimos aflorar o cansaço mediático pela obsidiante informação “total”, com o habitual destempero da imparável avalanche noticiosa sempre que um acontecimento mais forte vem, outra vez, converter o vasto mundo dos homens em pequena aldeia global. Todos os dias, em todos os canais, a torrente da iniquidade ao vivo e a cores, a espetacularidade da destruição e da morte, a coreografia do absurdo e do sofrimento. Mas, o demasiado humano da inumanidade em curso coloca-nos a pergunta incontornável: como chegámos aqui? Porque não acordámos mais cedo? como é possível que a decisão de um só venha afetar tão tragicamente a vida de milhões?
Informação “total” não basta: é preciso pensar para além das supostas evidências. Há dois anos, foi o impacto terrível do começo da pandemia, com o seu funesto cortejo de horrores, mas também de esperanças. Conseguimos concretizar algumas, superar a mortandade, realizar conquistas inesperadas — mas não nos tornámos melhores! Muitos idealizaram uma espécie de conversão humanista: afetados por uma tão forte imposição da natureza, com a sua irracionalidade viral a contaminar de forma quase “totalitária” — na doença e nos constrangimentos sanitários — sociedades inteiras, julgámos que a vida não voltaria a ser como dantes no seu “modus” tão ocidental: consumismo, injustiças, e políticas predadoras. Muitos sonharam que um novo sentido de fraternidade viria trazer um maior cuidado pela nossa “Casa Comum”. Afinal, acabados de emergir de um duro ciclo de provações e penas, eis que a violência da guerra se abate agora com toda a força sobre populações indefesas, atingindo a Europa, talvez o mundo, com o espetro mortal da aniquilação, e toda a sequência de horrores que as mitologias da guerra, feitas “raison d’État”, podem causar, quando nenhum propósito ético sustenta o exercício do poder. E perfila-se de novo no horizonte o chamado “equilíbrio do terror” (Leste-Oeste) que marcou o pós-guerra no século XX, quando o medo da deflagração nuclear acabou por tolher políticas mais audazes em favor da democracia e da liberdade. Hoje como então, o ditador é o Estado, e o Estado, o ditador: consolidar um poder imperialista, necrófilo e cleptocrata, sem olhar a meios, e se protegendo não já por uma policial “cortina de ferro”, mas pela invasão e pelo massacre: cidades literalmente arrasadas, milhares de vítimas civis, um país em escombros — eis o legado pelo qual o ditador do Kremlin ficará para a História. Na verdade, nada a que Mãe-Rússia não estivesse já habituada, na sua longa marcha macabra para um fim qualquer: mudou o czar mas ficou a férrea bota imperial, espezinhando, na mesma pátria e para além dela, milhões de “humilhados e ofendidos” ...
Não é possível vermos aquelas imagens de destruição de vidas comuns, sem pensarmos no sofrimento indizível por que passam milhares de seres humanos como nós: eles queriam apenas viver, habitar, ser uma família com direito a uma casa e a um quinhão de solo pátrio, mas dia após dia são espoliados de tudo, sem outro horizonte que a comunhão ainda possível da solidariedade, que de todo o lado veio abraçá-los. Nada justifica o sofrimento gratuito infligido pela malvadez. Agora como no tempo de Dostoievski, o mal tem o rosto do poder, e a violência, a sua linguagem: eis o longo cortejo dos humilhados e ofendidos, e o escândalo do sofrimento “total”!