Crónicas

Inimigo às portas

Os ingleses têm uma expressão para isto que me atrevo a traduzir: “nada continuará como estava e, como ficará, só o saberemos quando acontecer”

1. Tenhamos presente que o que se passa no leste da Europa não tem nada a ver com a NATO. Alguém, no seu perfeito juízo, consegue concluir que, se esta organização não tivesse integrado alguns dos países saídos da ex-URSS, não estaríamos a viver a guerra que vivemos? Quem assim pensa ou o faz por razões de ordem ideológica, ou desconhece a história. A Rússia é isto que vemos. Sempre o foi. Se recuarmos duzentos anos, encontramos o mesmo: um país que se vê com vocação imperial, autocrático, oligárquico, repressor, militarista, desconfiado de todos os que não são russos. Alguma diferença para o que temos hoje? E, na altura, não havia NATO. Como não havia há 100 anos, depois da revolução de Outubro, e o panorama era o mesmo. A adesão à NATO dos países do Báltico, da Polónia, da Roménia, etc., fortaleceu a organização e travou, durante muitos anos, o que está agora a acontecer. Se estes países, que aderiram nos anos 90, não o tivessem feito, estariam a viver na incerteza que a Ucrânia viveu até agora. Putin tem medo da NATO. É o seu maior pesadelo, porque sabe que o que tem para oferecer é disfuncional e o que sustenta a sua força são as armas nucleares. Não foi por acaso que jogou esse trunfo logo nos primeiros dias. Faz parte da doutrina soviética que, ao contrário do que pensamos, advoga o uso táctico de armas nucleares, logo no início de uma guerra, e não como resultado de uma escalada.

2. A impressão de que a Rússia não fala a uma só voz é crescente. Coisas ditas agora, são desmentidas mais tarde. As razões da invasão mudam ao sabor dos acontecimentos, ou de quem fala. Ao desarmamento e desnazificação, já se juntou o reconhecimento dos separatistas do Donbass e a anexação da Crimeia e, agora, chegou a mirabolante história das armas químicas e biológicas, feitas especialmente para o ADN dos eslavos e mandadas para a Rússia em passarinhos treinados para isso. Desde o início da guerra, li dois livros sobre Putin. Uma biografia e um estudo sobre o seu “círculo pessoal”, e a evolução, na linha do tempo, do modo de governar. Estamos na presença de um narcisista que adora a bajulação. Pouco se sabe da sua vida familiar, que esconde com cuidado. São várias, e muito alternativas, as versões sobre a vida dos seus pais. Tem o cuidado de se rodear de pessoas que o temem e prontas a assumir, por si, a responsabilidade pelos erros que comete. Não assina praticamente nada, deixando a responsabilidade para os outros. Nunca diz “sim” a ninguém, pois isso acarretaria responsabilidade. O poder é uma ilusão, não existe de modo orgânico. É consentido. Existe enquanto nele acreditamos, depositando-lhe expectativas. Seja o poder que pensamos que temos, seja o poder que delegamos noutros. É um axioma da teoria do poder, apoiada no controlo. Cada um pode criar a imagem que dele quiser criar. Putin criou a sua e soube vendê-la ao povo russo. Repare-se no que temos tido a oportunidade de ver: a separação, a distância a que se coloca dos outros. Vive numa redoma, enclausurado num “universo” que criou, onde só permite a entrada a muito poucos. Ao fim de 15 dias de guerra, alguém o viu junto às suas tropas? Nem que sejam as da retaguarda? O medo domina todas as relações. E Putin também tem medo dos outros. O Czar, Estaline, Putin, não são em nada diferentes. Ao longo da sua vida, que se aproxima dos 70 anos, foram inúmeras as traições cometidas pelo Sr. do Kremlin. Ninguém melhor que um traidor sabe do risco que corre de ser traído. Por isso, desconfia de todos. Até da própria sombra. Sabemos que só um círculo muito próximo do Presidente russo conhecia os planos da invasão. Os escalões intermédios, não faziam a mais pequena ideia. Tudo seria resolvido em três ou quatro dias. Fora assim em 2014 e, para o achismo que dispensou que a operação fosse estudada pelo FSB (serviços secretos), ia voltar a acontecer o mesmo. Municiaram-se as tropas, tendo isso em consideração, e toca a marchar sobre o restante Donbass e sobre Kyiv. No leste do país, convenceram-se que iam ser recebidos como exército libertador, com a população na rua a receber os soldados russos com cantos, vivas e flores. Não aconteceu nada do que estava planeado. O Ministro da Defesa, o “general” Serguéi Shoigú, não percebe nada do assunto. Tem capacidades de organização reconhecidas, mas nunca foi militar o que não seria um problema se não pensasse ser um entendido, rodeando-se e ouvindo quem sabe. Aquilo que Sergei Ivanov, o seu antecessor, e que também não era militar, montou, e bem (combate à corrupção no complexo militar-industrial russo, reorganização das Forças Armadas, modernizando-as), Shoigú (de mãe ucraniana) encarregou-se de destruir, criando uma rede de interesses e corrupção.  A clique do Kremlin vive da bajulação mútua, num universo paralelo onde impera a mentira. O Ministro da Defesa vendeu a Putin uma “operação militar especial” que seria um mar de rosas. Foi o que lhe impingiram as chefias militares. Chefias que, face ao que acontece no terreno, continuam em negação. Tenho ideia de que não falta muito para baterem de frente na parede da realidade. Com força. Li algures, tenho mesmo a ideia de que foi Zelensky que o disse, citando Churchill, que desceu uma “cortina de ferro” entre a Rússia e o mundo. A informação do lado russo, sobre as operações no terreno, é escassa. Para não dizer, nenhuma. Deve-se isto, não só à decisão de quase nada revelar, mas também à falta de conhecimento sobre o que se passa, por parte dos altos escalões. O pouco que se vai sabendo, chega sempre após passar por um crivo de “correcção” que dê ao enunciado “positividade e nenhuma negatividade”. Tudo corre bem, porque acabará bem. Aquilo que aqui escrevi na passada semana, continua a fazer sentido. Mas muito mais aconteceu e as sanções começam a ter o seu peso. Para além das declarações de intenção e ameaças, que Putin e “sus muchachos” debitam, muito pouco, para não dizer nada, se sabe, sobre o modo como vão reagir às sanções que sofrem. E as elites? Os oligarcas? Os cães não costumam morder a mão que lhes dá de comer… a não ser que se acabe a comida. O que sabemos sobre o que está a acontecer à economia russa? Conseguimos perceber que os problemas são muitos, embora negados. Verificam-se falhas nas linhas de fornecimento, o que é natural num país que importa muito. Incluam-se aqui produtos de grande valor estratégico-militar. Não é despiciendo o facto de o sistema soviético, de criar cidades e enormes complexos industriais, nunca ter sido abandonado. Pelo contrário, foi mesmo aumentado. Começa a ser difícil ver o médio e o longo prazo. Não há quem consiga negar que o modelo da economia russa, com pouca liquidez, onde não existe um fundo de estabilização, uma moeda fraca a valer quase nada, bolsa de valores fechada, sistema empresarial onde o valor e a competência valem pouco, é disfuncional. É fácil prever que o momento crise vai transformar-se, em pouco tempo, numa verdadeira catástrofe. Os ingleses têm uma expressão para isto que me atrevo a traduzir: “nada continuará como estava e, como ficará, só o saberemos quando acontecer”. Somemos, a tudo o que vai dito, o congelamento de contas dos bancos russos no estrangeiro. Uma economia em pré-falência, pois não creio que o banco central consiga aguentar a situação por muito tempo. Os juros aumentam, tornando o acesso ao crédito cada vez mais difícil. O investimento, bloqueado. O país parado e pendurado numa guerra. Algumas fontes russas dão conta de que os próximos dias serão decisivos. A Rússia não consegue aguentar muito mais tempo. As perdas em armamento são significativas, as baixas notórias, as tropas não têm vontade de combater, as linhas de abastecimento não funcionam e o dinheiro, tão necessário, desaparece entre os dedos. Lembram-se do programa “oil for food” acertado com Saddam Hussein, no entre guerras do Iraque? Não se espantem que o mesmo, daqui a algum tempo, volte a acontecer. Agora, com Putin.