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O medo, o pior adversário

Que é feito do espírito português de que tanto nos orgulhamos? O espírito que nos levou a levantar o nevoeiro de meio mundo?

Os anos 20 do século XXI serão para sempre associados a uma espécie de “molhar os pés” nas águas de uma nova era das trevas. Tornar-se-ão num inquietante alerta para gerações futuras de que a distância entre a civilização e a ruína não é tão curta como por vezes se pensa, conforme, aliás, já o demonstrou a queda do império romano às civilizações europeias que o sucederam e que agora parece terem-no ignorado O presente também demonstrará que lutar contra o “destino” também é opção – que o digam os ucranianos.Para os mais pessimistas, é quase tentador interpretar todo o início desta década à luz daquele que é, quiçá, o livro mais provocador e indutor de pânico da Bíblia: o Livro da Revelação/do Apocalipse de João. E, de facto, a analogia não deixa de ser perturbadora: nos finais de 2019, o mundo terá sido visitado pelo Primeiro Cavaleiro do Apocalipse – a conquista, identificada muitas vezes como pestilência, leia-se, pandemia. Agora, na Ucrânia, surge o Segundo Cavaleiro – a guerra, da qual decorre o advento do Terceiro Cavaleiro – a fome – já sugerido no racionamento de bens alimentares.Ora, por mais que esta “previsão” de eventos pareça ser a evidência de uma ordem determinista do universo, perde todo o sentido quando analisada sob o prisma da racionalidade. Por ordem da aparição dos cavaleiros, em primeiro lugar, a pandemia do coronavírus pouco se compara ao nível de devastação das pestes históricas (das quais a mais conhecida, mas longe de ser a única, é a Peste Negra); seguidamente, desde que se tem conhecimento do homem enquanto individuo em sociedade, nunca houve um período na história em que não houvesse guerras e, por fim, em relação à (im)provável “fome” que está para vir, antes que seja identificada como o rompimento de mais um selo bíblico do Apocalipse, que seja lembrado que a fome tem sido um problema internacional reconhecido desde a formação do Programa Alimentar Mundial em 1961. Por isso, não, o mundo não está a acabar. Está a mudar e temos que enfrentar as mudanças com coragem e seriedade. No caso português, os nossos antepassados, na verdade, passaram por situações piores e persistiram e nós também o faremos. Nota-se, contudo, que com o passar do tempo tem havido uma perda de coragem na proporção inversa à do aumento do histerismo no mundo ocidental. E que o comprove Portugal que, ainda em 2020, aquando do início da pandemia, correu aos supermercados para esgotar stocks. Até o do papel higiénico… Perante a conjuntura internacional atual, o medo começa novamente e, de forma previsível, a ganhar terreno no nosso país. Por isso, pergunto: que é feito do espírito português de que tanto nos orgulhamos? O espírito que nos levou a levantar o nevoeiro de meio mundo? Que nos levou à grandeza e nos pôs frente a frente com titãs como o Império Otomano entre 1538 e 1559? Que nos levou por mais de uma vez a nos livrarmos do jugo espanhol quando todos os reinos ibéricos caíram? O mesmo espírito que, tal como a outros, levou à imortalização do soldado Aníbal Milhais, apelidado de Soldado Milhões? Será nisto que acabam séculos de tradição de coragem portuguesa?É obvio que esse espírito resiliente ainda existe. Vejam-se os voluntários portugueses que tanto aqui como na Ucrânia estão a ajudar no apoio dessa nação e de seus nacionais. Mas, sejamos honestos, há um conjunto visível de pessoas que passou do receio natural suscitado por um conflito internacional a viver a vida pelo medo, uma saída que nada trará de bom para eles ou para o país. É por isso que, em tempos de crise, é preciso reaver a coragem e relembrar aos portugueses e àqueles a quem a cultura portuguesa abraçou que são descendentes de uma nação com História. Tal como o resto dos europeus, somos gente de orgulho e portadores de uma das culturas que fizeram o mundo como ele o é hoje. Portanto, agora, mesmo que os ventos de mudança nos tentem fustigar como fizeram a inúmeras civilizações, temos e vamos lutar pela preservação das nossas culturas e formas de vida. Tal qual os outros antes de nós o fizeram.