Mais descartáveis e menos gestão criam "pandemia de resíduos"
A pandemia de covid-19 levou a um aumento de produtos descartáveis, como os equipamentos de proteção individual (EPI), mas também a interrupções e desregulamentações da gestão de resíduos, fazendo do novo coronavírus igualmente uma pandemia de resíduos.
Em Portugal mas também no resto do mundo não há ainda dados recentes sobre essa "pandemia", mas números de 2020 já dão uma ideia da magnitude do problema.
Num relatório divulgado em fevereiro a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) dá um exemplo relacionado com as máscaras: em fevereiro de 2020, em apenas 100 metros de praia da ilha desabitada de Tai A Chau, Hong Kong, foram encontradas por conservadores da natureza 70 máscaras.
Em fevereiro de 2020 Portugal ainda nem tinha oficialmente casos de covid-19 mas a China já produzia, por dia, 110 milhões de máscaras, muito mais do que os nove milhões que produzia em janeiro. Segundo o relatório a OCDE, em abril a China (com 50% do mercado global de máscaras em 2019) produzia diariamente 200 milhões de máscaras faciais.
Especialmente a partir de março de 2020 aumentou exponencialmente a utilização mundial de EPI, que deverá ter continuado em alta em 2021 e já este ano. Em dois rios da Indonésia 15% do lixo recolhido entre março e abril de 2020 eram artigos de EPI, diz o relatório da OCDE, no qual se estima que nesse ano foram parar ao mar 1,56 mil milhões de máscaras.
E as "fugas" de EPI também acontecem em terra, com relatórios a indicarem que máscaras faciais e luvas obstruíram sistemas de drenagem urbana e que máscaras são encontradas nas ruas das cidades e à beira das estradas. Um estudo feito em Toronto, no Canadá, indicou que foram encontrados uma média de 1.010 artigos de EPI por cada quilómetro de bairros residenciais, comerciais e hospitalares.
Em Portugal, dados oficiais sobre resíduos urbanos são só até 2020, quando houve uma produção idêntica à de 2019, apesar da redução e paragem da atividade económica devido à covid-19. Em 2020 a taxa de crescimento da recolha seletiva foi também "francamente baixa", segundo a Agência Portuguesa do Ambiente (APA).
Os dados mais atualizados (não há dados sobre resíduos hospitalares) indicam que em 2020, primeiro ano de pandemia, houve um aumento de 23% na deposição de resíduos em aterro e uma diminuição na valorização, dados "que apontam para uma evolução desfavorável no sentido do cumprimento da hierarquia dos resíduos", salienta a APA, que associa a situação à pandemia e às orientações e recomendações para a gestão dos resíduos, de os indiferenciados irem preferencialmente para incineração ou aterro sem triagem prévia.
Estatísticas oficiais (INE) divulgadas a 22 de dezembro passado também salientavam que em 2020 houve um "afastamento das metas de gestão de resíduos urbanos", e acrescentavam que "o indicador de preparação para a reutilização e reciclagem sofreu um decréscimo de 3 pontos percentuais, fixando-se em 38%, piorando a convergência com a meta de 50%". E que o aumento da deposição de resíduos em aterro para 53% afastou-se da meta de 35%.
No relatório da OCDE fala-se também das "perturbações significativas" que a pandemia de covid-19 provocou na reciclagem de plásticos, devido à paragem temporária de recolha seletiva aliada a um aumento do uso de embalagens de utilização única, seja nos EPI seja para encomendas ou refeições. Em Portugal, durante meses, os cafés eram servidos em copos de plástico por medo de contaminação das chávena.
E se países mais ricos investem na recolha desse aumento de lixo tal já não acontece em países mais pobres, segundo o relatório. A covid-19 "contribuiu ainda mais para o desafio de gerir adequadamente os resíduos municipais", especialmente nos países em desenvolvimento, que já têm dificuldade em gerir o lixo, especialmente em zonas rurais, diz a OCDE, que acrescenta que também foram encerradas muitas instalações de tratamento de resíduos.
E depois a pandemia, além das perturbações no ciclo normal do lixo, afetou programas e empresas de reciclagem, por medo até que o vírus se espalhasse nos produtos recolhidos, adiou medidas para a redução do plástico, e levou à descida do preço do petróleo e à consequente redução do preço dos plásticos primários e produtos de plástico.
No relatório da OCDE não são também disponibilizados dados relevantes sobre resíduos ligados à saúde. Mas é dado um exemplo. Em Wuhan, na China, onde teve origem a pandemia de covid-19, os resíduos hospitalares passaram de 110 para 150 toneladas por dia em fevereiro de 2020 e alcançaram as 247 toneladas quando aumentou o número de contaminações.
No documento da OCDE, centrado no plástico, explica-se que muitos dos EPI e outros dispositivos médicos usam polímeros, que as máscaras são normalmente feitas de polipropileno, que as luvas são de borracha ou plástico, que muitos instrumentos médicos são hoje de plástico, normalmente o chamado PVC, e que o polipropileno também entra nas seringas, suturas e batas, e nos testes à covid-19.
E o plástico é o principal produto das embalagens de utilização única, e está também nas encomendas via internet. A compra 'online' e o 'take-away' aumentaram substancialmente com a pandemia, estimando-se um aumento de 15% na procura de serviços de entrega de alimentos e o mesmo número de desperdício de plásticos associados.
Em junho do ano passado a Agência Europeia do Ambiente (AEA) alertava para o aumento substancial dos EPI mas também de algumas embalagens e dizia ser necessário repensar as práticas de produção, consumo e gestão de resíduos de plástico de utilização única na Europa.
Apesar de as organizações internacionais não recomendarem o uso de luvas como medida preventiva da covid-19, entre abril e setembro de 2020 as importações adicionais de luvas para os 27 Estados membros foram de 105.000 toneladas, um aumento de 80%.
E a Organização Mundial de Saúde (OMS), alertava no início de fevereiro deste ano para a "necessidade extrema" de se melhorar a gestão de resíduos, face ao aumento de milhares de toneladas de resíduos médicos resultantes da pandemia de covid-19.
Num relatório a OMS dizia que só entre março e novembro do ano passado foram adquiridas cerca de 87.000 toneladas de EPI e enviadas para apoiar as necessidades urgentes de resposta dos países ao coronavírus, sendo que a maior parte desse equipamento deve ter acabado como lixo. E não foi tido em conta os produtos adquiridos fora da iniciativa da OMS.
E nos números da OMS estão ainda os 140 milhões de 'kits' de teste distribuídos, com potencial para gerar 2.600 toneladas de resíduos não infecciosos (principalmente plástico) e 731.000 litros de resíduos químicos.
Além de terem sido administradas globalmente mais de oito mil milhões de doses de vacinas, que produziram 144.000 toneladas de resíduos adicionais sob a forma de seringas, agulhas e caixas de segurança para as colocar.
Tal como no relatório da OCDE também no documento da OMS se diz que com a necessidade de fazer face à doença se deu menos atenção à gestão segura e sustentável dos resíduos, e se adverte que muitas instalações de saúde não estão equipadas para lidar com a outra pandemia, a pandemia dos resíduos.
Na sexta-feira passaram dois anos sobre a declaração do Estado de Pandemia para o covid-19 pela OMS.