Crónicas

“Rios de sangue e lágrimas...”

...a expressão foi usada pelo Papa Francisco, na recitação do Ângelus, na Praça de S. Pedro, quando fazia um apelo pungente ao fim da guerra, clamando: “A guerra é uma loucura, parai por favor! Olhai para esta crueldade”.

Quinze dias passados sobre esta guerra absurda, nada indica que o seu fim esteja próximo, antes pelo contrário. E a palavra que fica é mesmo “crueldade”, pois só a pura paranoia e inumanidade do autocrata do Kremlin podem ajudar a explicar (mas não a compreender) a extensão do massacre em curso.

É conhecida da história (e da literatura) a brutalidade “eslava”, quando protagoniza guerra ou violência. O que as televisões nos mostram todos os dias é a ilustração disso mesmo, com os contornos trágicos de uma mortandade gratuita infligida a civis indefesos, em várias aldeias e cidades, e a consequente catástrofe humanitária em curso, prosseguindo no século XXI uma guerra de invasão “atrasada” no tempo, com as táticas e a coreografia de violência que julgávamos arquivadas na memória mais negra do século XX europeu. Os dias passam e o rio de sangue e lágrimas vai engrossando o caudal, com imagens de aniquilação só vistas na guerra da Síria, sobretudo quando o ditador Sadat recebeu apoio militar do ditador Putin, como se lá fosse ensaiar toda a sofisticação bélica “pronta a usar” oportunamente... na guerra da Ucrânia.

De facto, se a guerra é a continuação da política por outros meios e a sua primeira vítima é a verdade — ditos clássicos, por demais repetidos e confirmados nestes dias —, o que o “Vladimir” tem estado a praticar, desde há anos, é o requintado exercício da mentira, com a complacência colaboracionista do Ocidente, que agora percebeu o logro e tenta emendar o passo, tarde e a más horas.

Um ditador é sempre um ditador: não há cosmética possível para “travestir” os inimigos da liberdade! E o que hoje se passa com o autocrata de Moscovo, que todos os dias manda encarcerar milhares de russos na sua própria pátria, é que todo o seu pensar e agir ressuma ódio à democracia e à liberdade. São esses, e não a Ucrânia, os verdadeiros “inimigos” que ele não quer à sua porta: aceitar conviver com esses valores é contra a sua natureza profunda, moldada pela máquina policial pós-estalinista e pela cultura imperial da Mãe-Rússia. Ora, este tipo de gente sempre encontra o apoio de um pequeno exército de torcionários e de idiotas úteis, que normalmente são as primeiras vítimas dos “amanhãs que cantam”, quando a repressão toma o freio nos dentes... A Europa do século XX está repleta de “militantes” que deram o seu contributo — a alma e o corpo — para o monstruoso cardápio de dezenas de milhões de mortos. Oxalá esses tempos estejam definitivamente arredados; mas, por cada dia de guerra e de insucesso negocial — renovada patranha “putinesca” —, cresce a indignação, a impotência e o medo, face ao futuro incerto e à (re)configuração de uma Europa que jamais voltará a ser a mesma, no seu pacifismo e bem-estar.

Não sabemos até onde poderá ir um ditador enlouquecido, alimentado por mitologias absurdas em justificação dos seus erros. E se é verdade que com a guerra nada se ganha e tudo se pode perder, o que fica mesmo das impressivas imagens que nos tornam próxima uma guerra distante, é a desumanidade da destruição e a face quotidiana de um sofrimento lancinante e sem fim à vista: torna-se mais difícil pensar o perdão!