Crónicas

Imagens (s)em paralelo: carnaval e guerra

Hoje, terça de carnaval e, infeliz mas muito provavelmente, sexto dia de guerra na Ucrânia, evoco, a propósito, duas imagens fotográficas sem aparente relação entre si.

A primeira, referente a um retrato em estúdio de um disfarce carnavalesco do jornal diário Heraldo da Madeira, teria sim uma relação óbvia com uma outra fotografia que aqui não reproduzimos, a saber, a de um homem vestido de Diário de Notícias. Se o periódico Diário de Notícias estava afeto a interesses britânicos na ilha, já o Heraldo da Madeira terá sido fundado em 1904, especialmente para defender os interesses da empresa alemã Madeira Aktien Gesellschaft, que detinha na ilha a exploração de sanatórios para cura de doentes tuberculosos. Apesar da concessão dos sanatórios aos alemães terminar em 1909 – em grande medida, devido à pressão da Inglaterra –, como referido na tese de mestrado de autoria de Helena Perneta, A Madeira e os Alemães, 1917-1939 O discurso na imprensa madeirense, “até à primeira Guerra Mundial, a posição alemã̃ na ilha da Madeira consolida-se, demonstrando certo êxito sobretudo na área comercial”. Naturalmente, com o eclodir da Primeira Guerra Mundial, os empreendimentos germânicos na Madeira são postos em causa, muitos cessando atividade, tendo aquele jornal encerrado em 1915.

Quando refletimos sobre a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, pensamos normalmente nos soldados enviados para outros países da Europa para combater nas trincheiras, (essa guerra tão horrível), e nunca em ataques em território nacional (pelo menos, no hemisfério norte). Ora, na verdade, a cidade do Funchal foi então bombardeada pelos alemães duas vezes, a 3 de dezembro de 1916 e a 12 de dezembro de 1917.

A destruição aqui visível da Igreja de Santa Clara é resultado deste segundo bombardeamento que terá durado trinta minutos, e que além de destroços e danos ditos materiais, terá provocado cinco mortos e trinta feridos. É necessário um conhecimento do contexto, por muito básico que seja, de modo a ler esta imagem como uma imagem da guerra, ou fruto dela. Na guerra a que agora assistimos, no fundo sem cobertura jornalística enquadrada em frentes militares, o nosso olhar é mediado pelo contexto do próprio conflito que vimos escalar e iniciar-se através dos nossos ecrãs, e pelos registos por telemóvel das vítimas ucranianas que se sentem no dever de testemunhar a ofensiva que estão a viver, e a que tentam sobreviver.

Já o sentido daquela primeira imagem ainda mais se perde perante o nosso olhar de hoje, por o tal jornal diário não existir já há tanto tempo. É, no entanto, a leitura daquela segunda imagem, a dos escombros, que retrospetivamente nos permite melhor entender o desaparecimento da pertinência daquele disfarce e sua simbologia (pró interesses germânicos) logo em 1915, ou mesmo antes (talvez já não fizesse grande sentido em 1910, como subentendido). Sobre a segunda imagem, (registo de um efeito da guerra que, não por acaso, foi designada de mundial), fica apenas um outro apontamento: que a sua legenda, aos olhos de hoje, nos remeta para o terror momentâneo que toda a guerra produz, dos “danos” muitas das vezes ditos colaterais que, raramente, ficam para a grande História, ou para a história da Grande Guerra; e que, como toda a guerra, deixa o seu rasto de fragmentos e vidas colhidas, tantas vezes esquecidas passados alguns anos, a não ser quando repensadas enquanto ferida aberta passível de nos (voltar a) atingir a partir desses outros fragmentos que são os testemunhos, as fotografias.