Crónicas

Capicua

A vida era de facto leve, tão simples como estudar em Lisboa, passar férias em casa, dormir até ao meio dia e ir à praia três vezes por semana

O ano em que fiz 20 anos foi capicua, mas não foi isso que o tornou especial e parte de um tempo em que fui mesmo feliz. E também não foi por ter mais dinheiro. Eu estava na faculdade e todos os meses fazia contas para esticar o que recebia de casa e da bolsa de estudo a ver se dava para ir ao cinema e jantar uma vez ou outra num restaurante chinês. A comida chinesa era moda e lembro-me do espanto que causou no Laranjal, quando contei à minha mãe.

A minha mãe era uma senhora normal, que nascera e crescera lá por cima sem nunca deixar os limites da Madeira, nem sequer para ir ao Porto Santo. Não lhe fazia diferença, os aviões davam-lhe medo e o mundo que conhecia tinha já muitas preocupações. A casa, os bordados, a família e os nossos sonhos chegavam, mas achou graça à comida chinesa, aos livros e as roupas surradas que eu desencantava para tentar ter estilo.

Havia, de cada vez que eu chegava de férias, ideias novas e uma alegria por estarmos juntos à mesa do almoço de domingo que reconfortava e abraçava mesmo que as notas nas frequências e nos exames da universidade não tivessem sido as melhores. Fosse como fosse e eu teria sempre aquele lugar, o meu quarto, a fazenda e o quintal. E estava livre para sonhar o que quisesse, para viver os meus 20 anos com a leveza da juventude, com as ilusões de quem nada percebe do que é ser adulto, nem sabe o quanto custa ser independente, ser dono de si.

A vida era de facto leve, tão simples como estudar em Lisboa, passar férias em casa, dormir até ao meio dia e ir à praia três vezes por semana. Ou não falhar o cinema, ler todos os livros a que deitasse a mão e o discutir política, o futuro do jornalismo e da arte no café, noite a dentro e de volta de umas cervejas. Ou escrever longas cartas a falar de tudo isto e do amor às amigas e ainda ter tempo para ir aos correios colar selos.

Lembro-me de ter isso, de ter tempo, de ter saudades dos que, todas as férias, ficavam em Lisboa, de estar feliz com o carinho de casa e da esperança sem fim no futuro. Eu tinha a certeza que seria grande, bom para mim e para o mundo. O muro de Berlim tinha caído, só podia trazer bons ventos e eu queria fazer parte desse movimento novo, diferente.

A esperança movia-nos a todos naquele início dos anos 90, prometia grandes realizações. No fim a história seria a de sempre, o mundo andou, mas continuou a ser o lugar cheio de defeitos, injustiça, prodígios, de bem e de mal. E eu envelheci, tento não defraudar aquela miúda de 20 anos. Sei que falhei, que errei e se pudesse faria muitas coisas de forma diferente, mas não trocaria aqueles anos. Fui de facto muito feliz e essa felicidade construiu parte do que sou.